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    Ricardo Araújo Pereira

    Sobre um sorriso

    12/05/2017 02h35

    Editoria de Arte/Folhapress
    Luiza Pannunzio - para tiras da Ilustrada de quinta-feira, dia 11/05/20107 - 11.mai.17

    Encontraram-se pela primeira vez numa festa. Ela levantou os olhos e viu que um estranho a olhava, por isso forçou um sorriso.

    Era um sorriso falso excelente para uso em situações desse tipo. O zigomático maior levantava os cantos da boca durante um período bastante aceitável, findo o qual voltava a pousá-los com uma lentidão muito educada. Quem não a conhecesse não tinha maneira de saber que aquele sorriso era falso. Era um sorriso burocrático, tão competente a fingir alegria quanto a cerimônia de se levantar quando o juiz entra na sala consegue simular respeito.

    Dias depois houve outro encontro fortuito. Ele aproximou-se, recordou que tinham se visto na festa. Ela não se lembrava. "Ah, sim. Me lembro", e de novo o sorriso falso inspirou paixão verdadeira. Junto de amigos comuns, ele soube onde ela fazia compras, ginástica. Forçou encontros. Que engraçado, frequentamos o mesmo supermercado. Sorriso falso.

    Uma piada meio aflita sobre peixe congelado. Sorriso falso. Você também faz essa aula de zumba? Sorriso falso. Mais dez anos de prática e eu domino esse reggaeton. Sorriso falso. Cuidado, não vá escorregar na minha poça de suor. Sorriso falso. Toda a vez que o embaraço da presença dele se repetia, ela castigava-o com o prêmio do sorriso falso.

    Meses passaram. Qualquer coisa mudou nela, não por causa das coisas que ele fazia, claro, mas por causa de uma espécie de desespero com que as fazia. Começou a procurá-lo.

    Esperava por ele na academia enquanto ele, sem saber, se demorava no supermercado para vê-la. Desencontros sucederam-se. Até que, um dia, por um daqueles acasos, esbarraram um no outro numa esquina.

    Ela deixou cair coisas, como nos filmes, ele apanhou-as sem jeito, como na vida real, e depois ele olhou para ela e ela sorriu para ele, o rosto abriu-se numa convulsão sem controlo, lábios apartaram-se, covinhas foram escavadas na bochecha, era finalmente um sorriso autêntico, sincero, verdadeiro.

    Ele não gostou.

    ricardo araújo pereira

    É humorista português e um dos criadores do coletivo Gato Fedorento, referência humorística em seu país. Escreve aos domingos.

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