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    Ricardo Araújo Pereira

    Por favor, desliguem os celulares

    02/06/2017 02h00

    Luiza Pannuncio/Editoria de Arte/Folhapress
    Luiza Pannunzio de 02 de junho de 2017

    Alguns médicos legistas amadores têm andado entretidos a passar certidões de óbito. O romance, o autor, o riso, a arte, a ficção –todos têm morrido várias mortes. Talvez seja exagero dizer que todas essas coisas morreram, mas é inegável que algumas estão com má cara.

    A ficção, por exemplo, agoniza por causa do celular. Quase todos os filmes têm, agora, uma aborrecida cena dedicada a telecomunicações. Em certo ponto, o herói interrompe a ação para constatar que está sem bateria no celular, ou tem pouco sinal no local onde se encontra. Assim, ninguém pode avisá-lo de que há um assassino escondido no armário, ou uma bomba prestes a explodir. E, infelizmente, quase nunca a bomba está prestes a explodir no armário onde se esconde o assassino, o que resolveria dois problemas.

    Antigamente, os enredos sofriam por défice de comunicação. As pessoas que rodeavam a Lassie tinham de fazer um esforço hermenêutico bastante grande para interpretar os latidos do bicho: "O quê, Lassie? O Timmy caiu ao poço da quinta dos Ferguson, junto ao celeiro, quando se debruçava para caçar uma borboleta, pois começou na semana passada uma coleção de lepidópteros?".

    Hoje, o excesso de comunicação prejudica a história. O final de "Romeu e Julieta" seria bem diferente no tempo dos celulares. Depois de dar a Julieta a poção que vai colocá-la durante 42 horas num estado de morte aparente, frei Lourenço envia um mensageiro a Mântua, para que ele ponha Romeu a par do embuste, e evite que o jovem resolva praticar gestos românticos irreversíveis. No entanto, como se sabe, o mensageiro não consegue contatar Romeu, e o caso acaba em tragédia. Se todas as personagens estivessem munidas de um smartphone, porém, o final da peça teria menor densidade dramática:

    – Alô?

    – Romeu, é frei Lourenço. Tudo bem? Olha, é só para avisar que a Julieta não está mesmo morta. Parece que está, mas não está. Foi uma poção que eu lhe dei.

    – Ah, ótimo. Que susto. É que parece mesmo morta. Sendo assim vou pô-la em posições estranhas e tirar umas fotos engraçadas para colocar no snapchat. #falsofalecimento. Já te mando.

    A voz que fala no início dos espetáculos pede aos espectadores que desliguem os celulares. É fundamental que comece a fazer o mesmo pedido às personagens da peça.

    ricardo araújo pereira

    É humorista português e um dos criadores do coletivo Gato Fedorento, referência humorística em seu país. Escreve aos domingos.

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