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    Ricardo Araújo Pereira

    Fraudes contemporâneas

    RICARDO ARAÚJO PEREIRA

    30/06/2017 00h00

    Sabe aquelas crônicas que examinam uma trivialidade do cotidiano e acabam a iluminar um aspecto profundo da existência? Não é o caso desta.

    Eu prefiro as trivialidades que não iluminam nada. Que existem só para me irritar e me deixam permanecer na escuridão, sossegado.

    O que se passou foi esta fatalidade: a Fernanda e o Miguel convidaram-me para jantar. Não só eles são pais recentes como são pais pela primeira vez, ou seja, daqueles que, quando a chupeta cai no chão, não correm apenas para fervê-la, fervem todo o apartamento, à cautela.

    Quando eu cheguei, a Fernanda tinha o bebê no colo e disse ao Miguel: "Papai, tenho fominha. Está na hora do meu leitinho", e ele foi à cozinha. Eu perguntei: "Que foi isso? Tens fominha?". A Fernanda disse: "Não, é uma maneira de falar". E eu: "É uma maneira de falar absurda. Se o Miguel é o teu papai, toda esta situação é bastante doentia". Ela: "Eu estava a falar pelo bebê, idiota". Eu: "Sou contra essa ventriloquia de bebês. É inquietante e, como espetáculo, é pobre: eu vi os teus lábios mexendo".

    Nessa altura, o Miguel voltou da cozinha e disse: "Está aqui a minha mamadeira quentinha, mamãe". Eu perdi a cabeça: "Isto é um jantar ou uma peça de teatro?". Eles: "Não tens nada a ver com a maneira como nós falamos. Se a gente quer falar pelo bebê, a gente fala". Fez-se um silêncio. Então eu disse: "Ui, eu não aguento. Esta bunda é tão pesada". O Miguel: "Hum?". Eu: "Nada, estava a falar pela cadeira da Fernanda". Fez-se um silêncio maior.

    E aí eles acharam que era melhor irmos para a mesa, despachar logo a refeição. O jantar incluía macarrão de abobrinha e arroz de couve-flor. Eu assinalei: "Isto, na verdade, é um logro gastronômico. Nem o macarrão é macarrão, nem o arroz é arroz. Tenho uma objecção de princípio a esta nova moda".

    Para desanuviar, o Miguel propôs um brinde: "À amizade. Tim-tim." Eu disse: "É curioso: o som 'tim-tim' nunca foi produzido, na prática, por qualquer grupo de copos: quando duas pessoas brindam ouve-se apenas um 'tim', e quando brindam três ouve-se 'tim-tim-tim' –os dois tins correspondentes ao brinde da pessoa A com as pessoas B e C e um terceiro tim produzido pelo brinde da pessoa B com a pessoa C." O Miguel não disse nada, mas a Fernanda, que não falava há algum tempo, disse que bunda pesada tinha eu.

    Eu não tenho muitos amigos.

    ricardo araújo pereira

    É humorista português e um dos criadores do coletivo Gato Fedorento, referência humorística em seu país. Escreve aos domingos.

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