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    Ricardo Araújo Pereira

    Seja sério na brincadeira

    07/07/2017 02h00

    Não há muitas coisas no mundo que me transtornem mais do que a brincadeira infantil conhecida popularmente por "roubei o teu nariz". Na verdade, não é uma brincadeira infantil: é uma brincadeira de adultos dirigida ao público infantil.

    Em toda a minha vida, nunca vi essa brincadeira resultar noutra coisa que não fosse uma alegria tola no seu autor e um embaraço muito triste no seu alvo. Nunca uma criança na qual a brincadeira foi perpetrada terá dito: "Sim, parece-me de fato plausível que esta falangeta de polegar, guarnecida de unha e tudo, seja o meu nariz. Ela tem exatamente o aspecto que o meu nariz teria se o arrancassem. E o método de extrair um nariz colocando-o entre os dedos indicador e médio parece-me também curial. Acabo de sentir um misto de susto e alívio bem prazeroso."

    Luiza Pannuncio/Editoria de Arte/Folhapress

    Nunca. As crianças evoluem da fase em que não entendem o alcance da brincadeira para a fase em que compreendem o conceito mas não se deixam enganar pela execução. Entre uma fase e outra, talvez haja uma janela de 30 segundos durante a qual a criança já compreende o que significaria um suposto roubo de nariz e ainda não distingue um nariz de uma falangeta. Na minha experiência, a brincadeira nunca foi executada no decurso desse estreito período. Ou é infligida à criança antes –altura em que ela ainda não a entende–, ou depois –quando já a execra.

    E é só por não possuir instrumentos intelectuais para fazê-lo que a criança não diz: "Escuta, isso que tens entre os dedos não é o meu nariz. É a tua dignidade." Mas vê-se que está a senti-lo.

    Relembrando o tempo em que eu próprio era criança, hoje consigo traduzir em palavras os pensamentos que me ocorriam naquele momento de profunda desilusão que sobrevinha ao fim da brincadeira: "Venho ao mundo no fim do século 20 e é este o entretenimento que colocam à minha disposição? O mundo dos adultos é povoado por pessoas que nem uma criança conseguem ludibriar como deve ser? Como é que gente com tão pouco talento para a dissimulação consegue manter um emprego, ou um casamento? Parece-me evidente que não terei outra alternativa a não ser dedicar a vida ao alcoolismo e à toxicodependência".

    Qualquer criança sabe que essa brincadeira é profundamente insatisfatória. Depois cresce e vai aplicá-la a novas crianças. Ser adulto é esquecer o que foi ser criança. Eis um mal que nunca me aflige.

    ricardo araújo pereira

    É humorista português e um dos criadores do coletivo Gato Fedorento, referência humorística em seu país. Escreve aos domingos.

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