• Colunistas

    Saturday, 04-May-2024 08:53:01 -03
    Ricardo Araújo Pereira

    Por um amor moderno e higiênico

    25/08/2017 02h23

    Fez-se um silêncio. Então, Gustave disse:

    – O que você acha disso, Joaquim Maria?

    O outro, como tinha a eternidade toda pela frente, resolveu provocar:

    – Eu acho que a culpa é sua.

    – Minha? O que foi que eu fiz?

    – Disse que a Bovary era você. Agora, todo o mundo acha que autor e personagem são a mesma pessoa.

    – Não era isso que a frase queria dizer...

    – Se era figura de linguagem devia ter colocado um emoji a seguir. Daqueles amarelinhos, piscando o olho. Assim, ninguém entende. Além disso, sua personagem também era adúltera. Também quis largar marido e filha. Que vergonha, Gustave.

    – E Capitu? Não traiu também?

    – Ainda hoje ninguém sabe. Eu sei, mas não digo. Muito menos agora.

    Luiza Pannunzio/Editoria de Arte/Folhapress

    Gustave procurou ajuda.

    – John, George, venham cá. Vocês não tinham uma canção chamada "Run for your Life", em que um homem ciumento ameaça matar a namorada caso ela o traia?

    – Xi, que amor datado... – comentou Machado.

    Gustave continuou:

    – Alguma vez alguém suspeitou que essa fosse a vossa posição pessoal?

    – Não – disse John –, mas eu também cantei "Eu sou o homem-ovo, eu sou a morsa", portanto ficava mais fácil entender que nem sempre o que eu dizia era verdade.

    – "Eu sou a morsa" –, resmungou Machado, abanando a cabeça. – O LSD é o doping da arte. Difícil era inventar um morto que fala só com a ajuda da cachaça, como a gente fazia no meu tempo.

    Gustave não desistia:

    – Vamos chamar o Bizet. Ele matou a Carmen, mesmo. Tem as mãos sujas de sangue fictício. Georges, vem aqui. Se fosse hoje, você teria feito igual?

    – Faria ligeiras alterações. A Carmen não trabalharia na fábrica de tabaco, para não incentivar o tabagismo, o amante não seria toureiro, para não pactuar com o sofrimento animal, os ciganos não seriam contrabandistas, para não perpetuar o estereótipo, e ela não morreria no fim, para não patrocinar a violência doméstica. Tirando isso, era tudo igual.

    Então, Flaubert disse:

    – Joaquim Maria, tem aí dessa cachaça de que você falou? Estou com vontade de brindar ao fato de termos morrido todos antes da invenção do Facebook.

    Machado foi buscar a garrafa, satisfeito. Ele conhecia bem aquele alívio do defunto que está conformado com ser defunto. Tinha sido ele a inventá-lo.

    ricardo araújo pereira

    É humorista português e um dos criadores do coletivo Gato Fedorento, referência humorística em seu país. Escreve aos domingos.

    Edição impressa

    Fale com a Redação - leitor@grupofolha.com.br

    Problemas no aplicativo? - novasplataformas@grupofolha.com.br

    Publicidade

    Folha de S.Paulo 2024