Fez-se um silêncio. Então, Gustave disse:
– O que você acha disso, Joaquim Maria?
O outro, como tinha a eternidade toda pela frente, resolveu provocar:
– Eu acho que a culpa é sua.
– Minha? O que foi que eu fiz?
– Disse que a Bovary era você. Agora, todo o mundo acha que autor e personagem são a mesma pessoa.
– Não era isso que a frase queria dizer...
– Se era figura de linguagem devia ter colocado um emoji a seguir. Daqueles amarelinhos, piscando o olho. Assim, ninguém entende. Além disso, sua personagem também era adúltera. Também quis largar marido e filha. Que vergonha, Gustave.
– E Capitu? Não traiu também?
– Ainda hoje ninguém sabe. Eu sei, mas não digo. Muito menos agora.
Luiza Pannunzio/Editoria de Arte/Folhapress |
Gustave procurou ajuda.
– John, George, venham cá. Vocês não tinham uma canção chamada "Run for your Life", em que um homem ciumento ameaça matar a namorada caso ela o traia?
– Xi, que amor datado... – comentou Machado.
Gustave continuou:
– Alguma vez alguém suspeitou que essa fosse a vossa posição pessoal?
– Não – disse John –, mas eu também cantei "Eu sou o homem-ovo, eu sou a morsa", portanto ficava mais fácil entender que nem sempre o que eu dizia era verdade.
– "Eu sou a morsa" –, resmungou Machado, abanando a cabeça. – O LSD é o doping da arte. Difícil era inventar um morto que fala só com a ajuda da cachaça, como a gente fazia no meu tempo.
Gustave não desistia:
– Vamos chamar o Bizet. Ele matou a Carmen, mesmo. Tem as mãos sujas de sangue fictício. Georges, vem aqui. Se fosse hoje, você teria feito igual?
– Faria ligeiras alterações. A Carmen não trabalharia na fábrica de tabaco, para não incentivar o tabagismo, o amante não seria toureiro, para não pactuar com o sofrimento animal, os ciganos não seriam contrabandistas, para não perpetuar o estereótipo, e ela não morreria no fim, para não patrocinar a violência doméstica. Tirando isso, era tudo igual.
Então, Flaubert disse:
– Joaquim Maria, tem aí dessa cachaça de que você falou? Estou com vontade de brindar ao fato de termos morrido todos antes da invenção do Facebook.
Machado foi buscar a garrafa, satisfeito. Ele conhecia bem aquele alívio do defunto que está conformado com ser defunto. Tinha sido ele a inventá-lo.
É humorista português e um dos criadores do coletivo Gato Fedorento, referência humorística em seu país. Escreve aos domingos.