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    Ricardo Araújo Pereira

    Pare, ou eu narro

    20/10/2017 02h00

    Toda a gente conhece a história: Schahriar descobre que a mulher o engana e decide matá-la. Fica então convencido de que todas as mulheres são iguais –que é uma ideia que os homens que não conhecem muitas mulheres costumam ter.

    Para não voltar a ser enganado, desposa uma nova mulher todas as noites, e executa-a no dia seguinte. Até que aparece Xerazade, que consegue salvar-se porque vem armada.

    Luiza Pannunzio/Editoria de Arte/Folhapress

    Não traz uma faca, nem uma arma de fogo: traz uma história. Começa a contá-la nessa noite e deixa o final para o outro dia. Como tem curiosidade em saber como a história acaba, Schahriar protela a execução. Na noite seguinte, Xerazade repete o truque: acaba de contar aquela história e começa outra.

    E assim sucessivamente, durante 1001 noites. A certa altura, não sabemos mais quem está a torturar quem: ele, que a mantém sob ameaça de morte; ou ela, que adia o fim das histórias para o dia seguinte?

    É um estratagema que suspende o mundo: a morte de Xerazade fica suspensa, mas a vida de Schahriar também. Não saber o fim de uma história gera um incômodo muito estranho.

    O leitor conhece aquela do assassino que só mata pessoas de nome Alfredo? Não existe, eu acabei de inventar. Vê como é chato? A gente fica a pensar: que assassino é esse? O que é que ele tem contra Alfredos?

    E mata para se divertir, ou é um assassino profissional que recusa todas as missões excepto as que têm como alvo um Alfredo? Se for esse o caso, conseguirá sustentar a família, com esse escrúpulo bizarro? Seus filhos rezam todas as noites por um cliente a quem um Alfredo tenha desonrado? Ficamos sem saber.

    E as histórias inacabadas, que agarram Xerazade à vida, talvez façam o mesmo por Schahriar. É uma hipótese minha: uma história sem final não salva apenas a vida de quem a conta; também salva a vida de quem a ouve.

    A vida do ouvinte também não acaba enquanto ele estiver tomado por aquela inquietação. Será verdade? Não sei, mas vale a pena tentar.

    Todos os dias, devemos começar uma história, e acabá-la apenas no dia seguinte –altura em que começamos outra. Tendo em conta esse objetivo, e desejando contribuir para a imortalidade do leitor, tenho todo o gosto em deixar esta coluna a mei

    ricardo araújo pereira

    É humorista português e um dos criadores do coletivo Gato Fedorento, referência humorística em seu país. Escreve aos domingos.

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