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    Ricardo Melo

    Moro num país tropical

    23/02/2015 02h00

    Enquanto as denúncias sobre a Petrobras, cartel do Metrô em SP e descalabros estaduais eram apenas temas de gabinete, muita gente apostou na velha fórmula de empurrar com a barriga. No Brasil "abençoado por Deus e bonito por natureza", imaginou-se: quem sabe tudo se ajeite como na canção de Jorge Ben Jor.

    Difícil. A sensação é a de que se chegou num limite em que tudo parece virado de cabeça para baixo. Partidos ditos representantes do povo, como o PT, tomam a dianteira no ataque a direitos dos trabalhadores. São medidas castigando desde o emprego até a educação.

    Pouco importa a justificativa de que se pretende combater fraudes, supostas prebendas ou benefícios exorbitantes. O fato é que a maioria foi pega de surpresa, sem explicações convincentes e, pior, sem qualquer contrapartida por parte dos mais ricos. No mínimo, um erro de comunicação; no máximo, rendição mal-disfarçada.

    Hoje a oposição empunha de modo oportunista bandeiras cativas do governo eleito: defesa de direitos trabalhistas, correção justa da tabela do IR e por aí afora. E vice-versa. O melhor retrato é a coalizão no poder. Tido como principal aliado e companheiro de carteirinha, o PMDB lidera a resistência ao governo. Aécio Neves, tucanos, que nada. Mesmo o zelador sabe que o maior adversário é Eduardo Cunha, do mesmo partido do vice-presidente.

    Claro que não pode dar certo. Desde a derrota contundente no Parlamento, Dilma tem sido obrigada a comer na mão do presidente da Câmara. Este nada de braçadas. Cunha diz o que pode e o que não pode, emplaca apaniguados em cargos chaves do Congresso e espera sentado a subserviência do Executivo. Nem quer pagamento à vista. Prefere caprichar nos juros, tal qual um agiota experimentado.

    O enredo funcionaria à perfeição caso a plateia escolhesse o silêncio. Nada aponta para isso. As greves nas fábricas, o bloqueio da ponte Rio-Niterói e a revolta em cidades como Curitiba e Rio Grande sinalizam que a luta apenas começou.

    Os ventos da Lava Jato sopram no mesmo sentido. Os métodos humilhantes impostos pelo juiz Moro a acusados chamam a atenção por atingirem figurões. Mais grave: perto de que passam as dezenas de milhares de presos sem culpa ou condenação, o ambiente em que estão os empresários equivale a uma suíte premium de hotel. O paralelo, antes de mais nada, serve sobretudo para escancarar a indigência da Justiça e do sistema carcerário.

    Por trás disso há um drama muito maior. O das famílias que, de uma hora para outra, perdem seu ganha pão pela paralisia do governo diante do efeito cascata das roubalheiras. A começar da Petrobras, as empreiteiras e construtoras afins engolfadas pelo escândalo são, antes de tudo, obras de cidadãos que nada têm a ver com os malfeitos.

    Que se afastem os corruptos e corruptores. Que se punam os acionistas majoritários, por ora blindados pela camada de executivos acostumados a vender a honra em troca de carros importados ou casas de luxo em condomínios vigiados. Que se decrete a intervenção judicial, de preferência a partir de magistrados alheios a espalhafatos, enquanto restam em aberto as culpas e punições devidas. Acima de tudo, que se preservem os empregos dos milhares de trabalhadores ameaçados.

    Sem medidas corajosas e iniciativa política, o governo só faz cavar sua própria cova. Não há "nega Tereza" que possa acudir, salvo se as ruas impuserem um freio de arrumação.

    ricardo melo

    Escreveu até agosto de 2015

    Na Folha, foi editor de "Opinião", da Primeira Página, editor-adjunto de "Mundo", secretário-assistente de Redação e produtor-executivo do "TV Folha", entre outras funções.

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