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    Ricardo Melo - Ricardo Pereira de Melo

    Até o papa percebe

    13/07/2015 02h00

    A Igreja Católica nunca foi propriamente uma entidade transformadora. Pelo contrário. Tem um currículo de alianças com o nazismo, com ditaduras pelo mundo afora e de apoio a toda a sorte de obscurantismos —a Inquisição e Galileu, por exemplo, que o digam.

    O Vaticano, de resto, sempre trabalhou como instrumento servil dos poderosos de ocasião. Impossível esquecer as ligações perigosas entre Pio 12 e Mussolini e o papel central de João Paulo 2º na derrubada do Muro de Berlim. Tarefa facilitada, neste último caso, pela traição e destruição dos ideais igualitários operadas pela burocracia stalinista.

    É por tudo isso que ganha importância o discurso do papa Francisco sobre os dilemas da época atual. As críticas à exclusão social e a referência ao capitalismo como "ditadura sutil" permitem, no mínimo, uma dupla leitura.

    A primeira atesta mais um sintoma da sangria de fiéis diante do crescimento exponencial das seitas evangélicas e do islamismo. O discurso católico apostólico romano há muito tempo deixou de seduzir simpatizantes. Não só pela assimetria entre o fausto da elite do Vaticano e a pobreza espalhada pelo planeta. Há mais: os escândalos de pedofilia e o desprezo absoluto por valores éticos e morais que a Igreja diz defender vêm tendo um efeito devastador na autoridade do pessoal de batina.

    Ao mesmo tempo, o sistema social ao qual o Vaticano rende homenagem secular exibe repetidos sinais de esgotamento. A perversidade de crises econômicas seguidas, a voracidade do capital financeiro, o sacrifício imposto a povos inteiros em favor de rendimentos parasitários soterram a reputação de ideais lastreados na resignação à espera de uma eternidade próspera.

    São mazelas renovadas a cada dia. O cerco da banca internacional à Grécia e o receituário imperativo de austeridade econômica não deixam mentir; junto a isso, a alternativa militar contra migrantes vítimas da fome e da opressão na África compõem um cenário do retrocesso civilizatório em curso.

    A cúpula da Igreja Católica conhece o ofício. Num período como esse, nada melhor que alguém com a biografia do papa Francisco e sua imagem despojada (embora motivo de polêmica na Argentina). "Quando o capital se converte em ídolo, arruína a sociedade, destrói a fraternidade, povos enfrentam povos." Foi mais longe ainda em seu discurso na Bolívia: "Ações de concentração monopolista dos meios de comunicação social, que pretendem impor pautas alienantes de consumo e uniformidade cultural, são uma forma de novo colonialismo, de colonialismo ideológico".

    No Brasil de hoje, se dependesse da oposição, o pontífice provavelmente estaria sujeito a um processo de impeachment ou coisa parecida. Isso se alguém não pedisse a recontagem dos votos dos cardeais que o elegeram.

    Inútil esperar de Roma qualquer solução terrena. Religiões não existem para tanto; quando muito, atuam como paliativos. O importante na fala do papa Francisco é o diagnóstico cortante. Nem precisa ser bom entendedor.

    ricardo melo

    Escreveu até agosto de 2015

    Na Folha, foi editor de "Opinião", da Primeira Página, editor-adjunto de "Mundo", secretário-assistente de Redação e produtor-executivo do "TV Folha", entre outras funções.

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