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    Rita Siza - Marcel Merguizo

    A ressaca olímpica

    DO PORTO

    18/08/2012 03h00

    Um ou dois dias depois de conquistar a medalha de ouro no concurso olímpico do heptatlo, a britânica Jessica Ennis assistia, ao lado do ciclista igualmente medalhado Bradley Wiggins, a um concerto secreto da banda rock Stone Roses em Londres. Pergunto-me o que andarão agora a fazer Ennis, e Wiggins, e os outros milhares de atletas que supostamente passaram todas as horas disponíveis dos últimos anos a treinar para os Jogos Olímpicos de 2012. O que acontece aos atletas quando a competição acaba?

    A reportagem do "Daily News", sempre em cima do acontecimento, revelava, com as fotos a confirmar a informação, que centenas e centenas de atletas olímpicos fizeram uma paragem no gigantesco McDonald's de Stratford antes de regressar à vida real. "Farra no McDonald's", alertava o diário, que sabia que à uma da madrugada as filas para os hambúrgueres, batatas fritas e batidos de leite ainda eram compactas --aparentemente, a combinação super-calórica do menu não impediu nem desencorajou a multidão de atletas "que passou os últimos anos a preparar-se para a olimpíada e já têm de se concentrar para o Rio 2016", comentava a peça.

    Que todavia, não esclarecia a minha dúvida. Quando a vida de todo este pessoal foi consumida durante meses e meses por um rigoroso regime de preparação para as suas provas, o que é que lhes sobra quando a chama olímpica finalmente se apaga? Aqueles que já pensam na olimpíada do Brasil terão direito a uma folga para descansar e celebrar, ou mantêm a disciplina e regressam logo ao trabalho? E os outros que decidiram pôr fim às suas carreiras em Londres, vão dedicar-se a quê a partir de agora?

    Num ou noutro caso, os momentos de indefinição e transição são os mais difíceis de suportar, ensinam-nos os estudos e os repetidos relatos de casos de angústia, desilusão e depressão de esportistas. São, estabeleceram os especialistas, os sintomas típicos da ressaca dos Jogos, a síndrome do stress pós-olímpico ou simplesmente os "post-Olympics blues", como dizem os norte-americanos. Manifestam-se quando os atletas caem na real e percebem como a vida é muito diferente fora das fronteiras da aldeia olímpica: depois de experimentarem a sensação de serem poderosos ou invencíveis, confrontam-se com um inexplicável vazio.

    A investigação mostra que uma vasta maioria de atletas olímpicos tendem a sofrer sérios problemas psicológicos e emocionais, frequentemente mergulhando na depressão, toxicodependência ou comportamentos de risco. Tentativas de suicídio são comuns: segundo as suas próprias descrições, é como se de repente o seu balão, cheio e redondo, perdesse todo o ar - e com ele toda a sua motivação, força de vontade e interesse na vida.

    Vários comités olímpicos, caso do Reino Unido, Austrália ou Estados Unidos, consideram o assunto tão sério, que criaram um serviço de aconselhamento para os seus atletas "aprenderem" a reintegrar-se num novo quotidiano sem alta competição. Por incrível que pareça, o desafio pode ser mais difícil do que nadar mais depressa do que todos, ou saltar mais alto do que todos os restantes, ou correr para a linha da meta à frente dos demais --muitos esportistas não sabem fazer mais nada.

    O Poseidon moderno Michael Phelps quer viajar e aprender a jogar golfe. A campeã britânica Victoria Pendleton vai estar atarefada a preparar o seu casamento. Depois disso, o sonho dela é ser "normal".

    rita siza

    Escreveu até dezembro de 2013

    É jornalista do diário português "Público", onde acompanha temas de política internacional, com ênfase na América Latina. Do futebol ao pebolim, comentou sobre diversos esportes, com particular atenção às Olimpíadas.

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