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    Rita Siza

    O racismo nos estádios - hoje, como há 20 anos

    DO PORTO

    04/01/2013 15h38

    Depois do jogador ganense Kevin-Prince Boateng ter pontapeado a bola para a bancada em resposta aos insultos que choviam na sua direcção por parte dos adeptos do Pro Pátria, um clube da quarta divisão italiana que o poderoso AC Milan defrontava numa partida amigável de demonstração, o capitão de equipa Massimo Ambrosini decidiu fazer aquilo que a Uefa (e a Fifa) deviam exigir que fosse feito sempre que um jogador de futebol é alvo de ataques racistas e xenófobos: retirou o time de campo e acabou com o jogo.

    Durante os 26 minutos que o AC Milan esteve em campo, Boateng, e também Urby Emanuelson, Sulley Muntari e M'Baye Niang, os jogadores negros do time, foram constantemente sujeitos a gritos e insultos por causa. Apesar das insistências dos jogadores, o árbitro nada fez para travar a ocorrência. Portanto, só restava uma maneira de acabar com a "brincadeira" de mau gosto: ir embora e deixá-los a gritar para o ar.

    Pode parecer uma reacção exagerada para uns; uma medida extrema para outros, uma decisão arrojada e revolucionária para outros. Infelizmente, nada do que se passou no campo de Busto Arsizio é novidade --e poucos lembrarão que há 20 anos o holandês Ruud Gullit, precisamente no AC Milan, já recomendava que os jogadores saíssem de campo e recusassem voltar ao jogo em resposta aos insultos racistas dos torcedores.

    A sugestão, muito aplaudida na altura, obrigou a Uefa a reconhecer a existência de um problema grave nos estádios de futebol europeus. Organizaram-se diversas campanhas de educação e iniciativas várias para acabar com o racismo, e até se alteraram alguns regulamentos --que permitem, por exemplo, que a equipa de arbitragem suspenda o jogo ou que um clube seja multado ou punido pelo comportamento da sua torcida-- mas na verdade, desde 1992 quase nada mudou. É intolerável que a Uefa, que agiu com tanta determinação para erradicar o hooliganismo, continue a assobiar para o lado perante sucessivos casos de racismo e xenofobia.

    Hoje, como antes, a reacção dos jogadores do Milan foi elogiada por companheiros de profissão de toda a Europa: o capitão belga do Manchester City, Vincent Kompany, elogiou o comportamento de Boateng e do resto do time, e descreveu a torcida do Pro Pátria como uma "cambada de racistas idiotas" (em abono da verdade, tem de ser dito que a esmagadora maioria das pessoas no estádio manifestaram a sua revolta pelos insultos e aplaudiram os futebolistas que se retiravam de campo). O francês Patrick Vieira saudou a coragem de Boateng e companheiros e considerou que os futebolistas devem permanecer "unidos" para combater o racismo.

    Pelo seu lado, o internacional inglês Rio Ferdinand recorreu à ironia para criticar a habitual "complacência" da Uefa quando confrontada com situações semelhantes. Numa declaração deixada no Twitter, Ferdinand pergunta: "Será que a Uefa agora vai querer multar o AC Milan por não conseguir controlar os seus jogadores?!".

    Outros companheiros ingleses foram um pouco mais longe, lamentando que as entidades que governam o futebol tenham deixado que a situação chegasse a este ponto. Michael Owen e Gary Lineker, duas antigas glórias da selecção de Inglaterra, exigiram que a Uefa fosse mais "proactiva" nas punições destes actos, e notaram que quanto mais tempo a organização levar a tomar medidas para proteger a integridade do futebol e dos seus executantes, maior a probabilidade de se repetirem manifestações racistas.

    Até agora, que me tenha apercebido, só o holandês Clarence Seedorf do Botafogo considerou errada a atitude do seu ex-colega Boateng, que impediu os "90% de espetadores no estádio de aproveitar o jogo de futebol". Seedorf acha que ao deixar-se afectar pelos insultos, os jogadores estão a dar demasiada importância a um pequeno grupo de idiotas e talvez mesmo a encorajar estes comportamentos.

    Percebo os seus argumentos, mas não partilho a sua opinião. Já que parecem imunes à mais básica decência humana e incapazes de respeitar o seu semelhante, os indivíduos que insultam têm de ser responsabilizados pelo seu comportamento, e têm de saber que a sua atitude terá consequências drásticas. Já que gostam tanto de esporte e de competição, talvez entendam a mensagem: estão sempre a perder --nunca a ganhar.

    rita siza

    Escreveu até dezembro de 2013

    É jornalista do diário português "Público", onde acompanha temas de política internacional, com ênfase na América Latina. Do futebol ao pebolim, comentou sobre diversos esportes, com particular atenção às Olimpíadas.

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