• Colunistas

    Monday, 06-May-2024 03:03:35 -03
    Ronaldo Lemos

    A pobreza das listas

    30/12/2014 02h00

    Cada vez se produz mais música no mundo. Mesmo com reclamações sobre a crise da indústria fono gráfica, ou manifestações de artistas pop de que não são pagos o suficiente pelas novas mídias, o fato é que tem sempre mais gente fazendo música. A tecnologia libertou o impulso humano de se expressar, barateando os meios de produção sonora e gerando canais para sua circulação.

    Com isso, no fim do ano, chega a temporada de listas para tentar organizar o que foi produzido. É o famoso esforço de "filtragem" ou "curadoria": um guia mínimo do que teve destaque. O problema é que as listas de melhores do ano são de uma pobreza franciscana (a melhor palavra para descrevê-las seria "etnocêntricas", mas melhor pegar leve em artigo de fim de ano).

    Uma das razões da pobreza é que a maioria delas inclui apenas lançamentos que bem ou mal passaram por algum modelo da indústria fonográfica: giram em torno de conceitos como "álbum" ou "música" do ano. Com isso, acabam sendo o filtro do filtro do filtro.

    A maior parte da produção musical do planeta não respeita esses formatos. É produzida de modo fluido e contínuo, tornando jurássico considerar a "canção" como a forma musical central, mesmo no Ocidente. O resultado é que as listas de "melhores" consideram apenas uma parcela ínfima do que existe em termos de produção sonora.

    Daria para fazer melhor. Como é impossível acompanhar in loco as múltiplas cenas e microcenas globais, uma opção seria focar na mídia que hoje possui a mais abrangente e diversa produção musical do planeta: o YouTube. O site se tornou, por excelência, o lugar para descobrir (e participar) do que existe de mais novo e vibrante em música, no qual até mesmo o etnocentrismo (olha a palavra aí de novo) pode ser transcendido.

    Quem quiser provar uma gota desse fluxo musical pode prestar atenção, por exemplo, no chaabi egípcio. Enquanto o país mergulha em convulsão política, há energias positivas se condensando no território musical.

    O chaabi surgiu como música para animar casamentos e festas religiosas. Com a tecnologia, modernizou-se, tornando-se eletrônico, e decolou via YouTube. Venceu assim o preconceito que enfrentou por décadas (era tido como música ruim feita por e para pessoas de baixa renda) e se tornou o ritmo "cool" do momento para as novas gerações. Hoje movimenta raves nas ruas do Cairo, onde multidões de homens dançam sem camisa.

    As mulheres também dançam, mas em lugar separado. Tudo sem álcool. É música produzida sem formato: mais um modo de fazer do que uma coleção de canções terminadas. Cena que usa a eletrônica para reinventar a tradição musical local. E passa longe de listas de fim de ano.

    Uma "canção" inspirada pelo chaabi chama-se "Al-Mashoub" ("Idiota", em português), do produtor Maurice Louca. É uma mistura de modulações eletrônicas com escalas árabes. É também um ótimo nome para quem ainda insiste em enxergar vazio em um mundo cheio de novidades.

    *

    JÁ ERA
    Feliz Natal

    JÁ É
    Feliz Ano-novo

    JÁ VEM
    Feliz Singularidade #sqn

    ronaldo lemos

    É advogado, diretor do Instituto de Tecnologia e Sociedade do Rio de Janeiro (ITSrio.org). Mestre em direito por Harvard. Pesquisador e representante do MIT Media Lab no Brasil. Escreve às segundas.

    Fale com a Redação - leitor@grupofolha.com.br

    Problemas no aplicativo? - novasplataformas@grupofolha.com.br

    Publicidade

    Folha de S.Paulo 2024