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    Ronaldo Lemos

    O avesso das cidades criativas

    24/03/2015 02h00

    Nos últimos anos ganhou força no terreno do urbanismo a ideia da cidade criativa. Ela parte da premissa de que é possível para grandes cidades globais viverem a partir de profissões criativas: design, programação, audiovisual, arquitetura e assim por diante. É um conceito quase utópico de que grandes aglomerados humanos poderiam tirar seu sustento diretamente do espírito criativo dos seus habitantes.

    Um dos expoentes mais conhecidos dessa ideia é o urbanista americano Richard Florida. Ele chegou a criar um "índice boêmio" para as cidades. Na sua visão, quanto mais boêmia a cidade, mais ela atrai pessoas criativas e, com isso, assegura um ciclo virtuoso de expansão econômica. Na mesma linha, Florida criou também o "índice gay", que correlaciona ambiente urbano aberto e diverso ao crescimento econômico. Londres, Nova York ou San Francisco seriam exemplos. Por sua abertura, tolerância e diversidade, esses locais atuam como ímãs para a classe criativa global.

    Essas ideias são importantes e servem como boa bússola para se pensar a vida na cidade em qualquer lugar do mundo. No entanto, há aspectos menos discutidos.

    Um dos elementos para a existência de cidades criativas é a separação entre os centros de comando, design e controle dos lugares onde acontece efetivamente a manufatura. Em outras palavras, as cidades criativas são o lado da moeda onde fica a parte inventiva da divisão do trabalho. Mas para isso acontecer, em algum outro lugar alguém precisa colocar a mão na massa.

    Tome-se os produtos da Apple. Na embalagem consta que são "designed by Apple in California" (desenhados pela Apple na Califórnia). Logo a seguir há uma curiosa frase: "assembled in China" (montado na China). Note-se que não se usa o famoso "made in China". E nem se diz quem é responsável pela montagem. Em geral, de cada US$ 100 de um produto da Apple, US$ 70 ficam nos EUA pelo design (remunerando as "cidades criativas"), 29% vão para os fabricantes de componentes espalhados pelo mundo e 1% ficam com as montadoras chinesas.

    Em síntese, para cada "criativo" na Califórnia, há em algum lugar do mundo uma planta industrial otimizada para operar com o menor custo possível, transformando ideias em produto industrial de larga escala. Goste-se ou não, esse desacoplamento entre criação e produção impulsionou grandes inovações dos últimos anos. Por meio desse arranjo, a Apple tornou-se a empresa mais valiosa do planeta hoje.

    O Brasil tomou caminho diferente. Não embarcamos na possibilidade de aproveitar as plantas industriais chinesas para impulsionar indústrias criativas locais. E agora talvez seja tarde demais. Não só a China está se tornando cada vez mais criativa: os EUA querem trazer de volta a manufatura. Isso está mudando de novo a cara da indústria global. A pergunta que fica é: o que o Brasil vai fazer fazer diante disso?

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    É advogado, diretor do Instituto de Tecnologia e Sociedade do Rio de Janeiro (ITSrio.org). Mestre em direito por Harvard. Pesquisador e representante do MIT Media Lab no Brasil. Escreve às segundas.

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