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    Ronaldo Lemos

    O perigo do solucionismo tecnológico

    04/07/2016 02h00

    Em tempos de retrocesso com relação a tantas questões humanas, é fácil cair na tentação do "solucionismo" tecnológico. O termo foi cunhado pelo escritor bielorrusso Evgeny Morozov no livro "Para Salvar Tudo, Clique Aqui". Refere-se ao desejo irracional de acreditar que a tecnologia pode servir de panaceia para problemas que instituições falharam em resolver.

    Um exemplo de solucionismo gerou polêmica na semana passada. O jornalista norte-americano Shane Snow publicou um artigo propondo resolver o problema das prisões nos EUA, onde um preso custa até US$ 60 mil por ano (mais que a renda anual de boa parte da população). Ele sugeriu um "experimento mental": em vez de encarceramento, os presos deveriam ser mantidos em um sistema de realidade virtual. Todo o contato humano deveria ser substituído por interações puramente virtuais. Isso eliminaria a violência nas prisões.

    Além disso, a comida deveria ser substituída por Soylent. Trata-se de um pó alimentar (parecido com uma farinha láctea) que alega ter todos os nutrientes necessários. O produto tem entre seu público-alvo jogadores de videogame que preferem pular as refeições a abandonar o jogo. Como Soylent é mais barato do que comida usual, a ideia de Snow é que os presos fossem alimentados apenas com o produto.

    São ideias tão absurdas que levam a crer que Snow não fala sério. O artigo poderia ser pegadinha tardia de 1º de Abril ou proposta de argumento para um seriado de terror como "Black Mirror", especializado em distopias tecnológicas. Seja o que for, o professor do MIT Ethan Zuckermann dispôs-se a escrever um ensaio respondendo a essas propostas, com o sugestivo título "A Pior Coisa que Li neste Ano e o que Aprendi com Ela".

    Ethan lembra que as propostas acima são condenáveis por muitas razões. Além de violarem direitos humanos, não há estudos sobre os efeitos da exposição prolongada à realidade virtual nem ao Soylent.

    Ao contrário, o isolamento prolongado do contato com outras pessoas provoca ansiedade, pânico, paranoia e violência. E o problema principal: o "solucionimo" tecnológico trata apenas de efeitos, sem cuidar das causas. O problema nos EUA não é só a vida carcerária. É o fato de o país possuir a maior população carcerária do planeta (25% dos presos do mundo estão nos EUA). O que a tecnologia pode fazer para diminuir prisões em massa? Isso o artigo de Snow não diz.

    Eis meus dois centavos nessa discussão: há um outro roteiro de seriado de terror nessa história. Em um mundo que incentiva o indivíduo a consumir mídia de forma cada vez mais intensa, a toda hora e lugar, os sintomas que Zuckermann teme nas prisões (alienação, ansiedade, paranoia) estão cada vez mais presentes do lado de "fora" delas. Talvez no futuro haja presos que, ao serem libertos, surpreendam-se com a quantidade de pessoas conectadas a dispositivos de realidade virtual e se alimentando de Soylent.

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    ronaldo lemos

    É advogado, diretor do Instituto de Tecnologia e Sociedade do Rio de Janeiro (ITSrio.org). Mestre em direito por Harvard. Pesquisador e representante do MIT Media Lab no Brasil. Escreve às segundas.

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