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    Rosely Sayão

    Valores democráticos

    12/05/2015 02h00

    Os filhos da família Silva estudam em uma escola particular renomada de uma capital brasileira. Mensalidade caríssima! O mais novo frequenta o último ano da educação infantil e o mais velho já está no final dos anos iniciais do ensino fundamental.

    A escola, como muitas outras, tem em seu projeto educativo o ensino do tema da sustentabilidade.

    Em cada ano letivo, toda a escola se envolve em um tema comum, cada turma desenvolve um projeto adequado à série e, conduzidos pelos professores, os alunos aprendem muito com esse tipo de trabalho, além, é claro, de aos poucos ganharem mais consciência cidadã.

    Neste ano, o tema foi a crise hídrica que nos afeta. As famílias dos alunos dão total apoio aos trabalhos, participam e alguns projetos se transformam em verdadeiras campanhas dirigidas à comunidade escolar.
    Uma mãe, entretanto, ficou cismada com o comportamento do filho mais velho no decorrer do projeto do qual ele participou. O garoto, que tem 10 anos, passou a cronometrar o tempo que os pais gastam no banho. Passados cinco minutos, bate na porta e diz que é preciso desligar imediatamente o chuveiro. Depois, marca em uma tabela o tempo gasto no banho por todos da família e leva a informação para a escola.

    A mãe, professora universitária, ficou preocupada porque, conhecedora de história universal, associou esse comportamento a práticas que já existiram em sistemas totalitários. Neles, as crianças eram doutrinadas pelas escolas a denunciar os pais, caso eles transgredissem os princípios adotados pelo governo. Lembra-se disso, caro leitor?

    Os filhos da família Duarte frequentam uma escola pública, também de uma capital brasileira, que participa de eventos literários que a cidade promove, como "Encontro com o autor", por exemplo. Dia desses, uma gestora da escola procurou na internet uma obra de uma escritora e poeta para distribuir aos alunos que iriam ao encontro dela.

    No encontro, a escritora deu-se conta, pela participação dos alunos, que eles haviam lido um poema destinado a adultos e que continha algumas palavras fortes (palavrões, para ser mais exata). Ela alertou-os a esse respeito, mas não deu importância ao fato. Os pais deram. Ficaram muito bravos, e levaram o caso para as redes sociais. A imprensa fez reportagens, criticando tanto a autora do texto quanto a gestora da escola, que teve seu emprego público ameaçado.

    A escola errou? Errou, mas não foi um erro descomunal, tampouco insuperável, considerando o acesso que as crianças têm hoje ao mundo adulto. Um amigo, que mora nessa cidade e é professor de literatura, também ficou cismado e me escreveu a esse respeito.

    Muitos pais têm censurado leituras que a escola indica aos alunos, pelos mais variados motivos. E a escola tem acatado os pais, na maior parte dos casos. O grande equívoco é o de aceitar esse tipo de intervenção de pais na atuação profissional da escola. Uma boa saída para resolver esse tipo de situação é o diálogo, com todas as partes envolvidas. Alunos inclusive, e principalmente.

    Os nomes das famílias são fictícios, mas as histórias são reais. Os acontecimentos são díspares, mas com algo em comum: a transgressão, mesmo sem intenção, de princípios democráticos valiosos como o respeito à privacidade e o ensino do conhecimento com liberdade para aprender com os erros, por exemplo.

    Precisamos ensinar na escola os valores democráticos. Não é difícil transmitir às crianças os cuidados que devemos ter para a manutenção da democracia. O futuro irá reconhecer nosso empenho nesse sentido.

    rosely sayão

    Escreveu até julho de 2017

    Psicóloga e consultora em educação, fala sobre as principais dificuldades vividas pela família e pela escola no ato de educar e dialoga sobre o dia a dia dessa relação.

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