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    Rosely Sayão

    Se deixada livre, criança comerá algo que gosta até passar mal

    05/04/2016 02h00

    Está bem difícil para nós, adultos, ter nossa boca sob controle. Justo nós, que deveríamos ter bem desenvolvido –e usar sempre– o mecanismo de autorregulação, ou seja, a capacidade de conter um forte impulso, seja ele qual for. Ora não conseguimos conter o que sai de nossa boca, ora não controlamos o que entra por ela. E é desse último caso que vou tratar hoje.

    A cozinha está em alta. Não é possível zapear pelos canais de televisão, abertos e/ou fechados, sem passar por, pelo menos, três ou quatro programas de culinária, quando não mais. São reality shows na cozinha, competições culinárias, aulas com menus e receitas etc. Para todos os gostos e bolsos.

    Isso quer dizer que temos ido mais à cozinha, que temos comido melhor? Não. Esses programas servem, principalmente, para estimular a vontade de comer, de mastigar e alimentar a nossa gula. Um estudo publicado em uma revista científica apontou que um quinto da população brasileira está obesa!

    Não temos tradição de comer regularmente legumes, verduras e frutas. Nossas preferências são as carnes, em geral gordurosas porque ficam mais saborosas, massas, frituras etc. Desde sempre nossa alimentação foi essa, mas o nosso tipo de vida mudou. E, agora, nossa capacidade de contenção está muito baixa. Esse é mais um indício da infantilização do mundo adulto, por sinal.

    E as crianças, o que têm aprendido conosco? Não vou tratar da obesidade infantil, mas de uma importante causa dela: a falha na construção do mecanismo de autorregulação. Nos primeiros cinco anos de vida das crianças, percebemos com clareza que elas não conseguem, ainda, resistir a um impulso, e este nem precisa ser dos mais fortes. É por isso que elas fazem birra, batem, mordem, fazem o que sabem que não poderiam fazer, por exemplo. É aos poucos que a criança aprende a conter impulsos que são socialmente inadequados ou que a prejudicam.

    Você conhece o ditado popular que afirma que "a criança é um saco sem fundo"? Isso diz respeito à falta de controle dela sobre si mesma e à falta de autoconhecimento. A criança não é capaz de sentir que está saciada, por exemplo. Se ela gosta de comer um alimento e for deixada livre para comer a quantidade que quiser, comerá até passar mal. Um amigo tem viva a lembrança de ter sido hospitalizado aos oito anos por ter comido quase uma caixa inteira de uvas!

    As crianças têm percebido que não tem sido importante, para nós, o ensinamento do autocontrole. Aliás, elas percebem com muita sagacidade que nós mesmos não nos importamos em usar essa capacidade. E, se nós não a usamos cotidianamente, por que haveriam elas de usar?

    Desenvolver a capacidade de, voluntariamente, conter impulsos, por mais fortes que eles sejam, que podem prejudicar a própria pessoa ou o outro, é fundamental para o crescimento, para o bom desenvolvimento. Eu diria que esse aprendizado é tão importante quanto outros aos quais os pais se dedicam com fervor.

    Para ensinar o autocontrole aos filhos é preciso esforço, muito esforço pessoal. E parece que esforçar-se é algo que sabemos fazer bem na busca do êxito e do sucesso. Será que gastamos todo nosso potencial nesses itens e ficamos zerados para o esforço e a paciência necessários para tal ensinamento aos mais novos? Aí está uma pergunta que merece nossa reflexão!

    rosely sayão

    Escreveu até julho de 2017

    Psicóloga e consultora em educação, fala sobre as principais dificuldades vividas pela família e pela escola no ato de educar e dialoga sobre o dia a dia dessa relação.

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