• Colunistas

    Monday, 06-May-2024 23:04:21 -03
    Rubens Ricupero

    Dialogando com o carrasco

    29/09/2014 02h00

    Misturar diplomacia com demagogia nunca dá certo. Pior é quando presidente em busca de reeleição submete a Assembleia Geral da ONU ao espetáculo da propaganda de baixo nível do nosso horário eleitoral obrigatório.

    Os diplomatas estrangeiros não podem fazer como o espectador no Brasil, que simplesmente desliga a TV ou passa a outro programa. Foram obrigados a aguentar impávidos os disparates que lhes impingiu o discurso brasileiro de inauguração da assembleia.

    Disparate, diz o dicionário, é expressão destituída de razão e senso, algo de despropositado e fora da realidade.

    A definição se ajusta como luva à declaração de que o Brasil condena os bombardeios americanos aos degoladores do Estado Islâmico porque favorecemos o diálogo e os meios pacíficos.

    Alguém deveria ter explicado à presidente que diálogo é excelente maneira de resolver conflitos desde que o outro lado concorde em ouvir e responder.

    Quando a resposta é a faca na carótida, não existe diálogo possível. Alguém imagina que as vítimas de Auschwitz poderiam ter dialogado com a Gestapo e os SS? Ou que os cambojanos e ruandeses massacrados deveriam ter mantido conversação polida com genocidas?

    Por que será diferente com fanáticos e psicopatas que trucidam prisioneiros inermes e torturam todos os que não aderem ao Califado?

    Duas semanas atrás, a ofensiva do EI estava às portas de Bagdá e da capital do Curdistão. Se não tivessem sido detidos pelos ataques aéreos americanos, milhares de refugiados teriam tombado nas mãos dos piores assassinos que o mundo conheceu desde o Khmer Vermelho.

    O que o Brasil propôs de prático e efetivo para evitar tal desenlace, além de banalidades piedosas e ineficazes como aconselhar o diálogo com degoladores?

    Se não sabemos ou podemos tomar iniciativa para neutralizar os terroristas, deveríamos ter ao menos a decência de ficar calados. Condenar os bombardeios, único recurso existente naquela hora para afastar a ameaça, equivale a condenar ao massacre civis desprotegidos.

    Há um nome para esse tipo de atitude confortável e hipócrita: irresponsabilidade. Nada mais fácil do que o principismo de invocar o diálogo em situação na qual esse método obviamente se encontra fora da realidade.

    É o mesmo que lavar as mãos em relação à consequência trágica mais que provável de um conselho despropositado. A diplomacia não deve buscar o aplauso fácil. Tem de responder pelos resultados previsíveis do que propõe.

    Isso na melhor das hipóteses, se o conselho foi dado com sinceridade e boa fé, embora desprovidas de discernimento.

    Se, ao contrário, a motivação é o antiamericanismo barato com o objetivo de angariar votos, é muito mais grave. Nesse caso, combina-se a irresponsabilidade com a provocação gratuita, sem contribuir em nada para minorar o sofrimento das vítimas ou fazer avançar a pacificação do conflito.

    Em qualquer das situações, não é a receita para tornar o Brasil candidato irrecusável a membro permanente do Conselho de Segurança da ONU, posição que se alcança apenas por meio de diplomacia responsável, a serviço da moderação e do equilíbrio.

    rubens ricupero

    Escreveu até março de 2015

    Foi secretário-geral da Unctad, ministro do Meio Ambiente, da Fazenda, embaixador em Genebra, Washington e Roma.

    Fale com a Redação - leitor@grupofolha.com.br

    Problemas no aplicativo? - novasplataformas@grupofolha.com.br

    Publicidade

    Folha de S.Paulo 2024