• Colunistas

    Sunday, 19-May-2024 18:03:14 -03
    Ruy Castro

    Os cristais de Johnny

    11/04/2016 02h00

    RIO DE JANEIRO - Em 1999, o pesquisador musical Sergio Ximenes foi visitar Johnny Alf. Em certos países, o autor de "Rapaz de Bem" e de tantas canções que lançaram as bases da bossa nova seria um homem rico. Mas Johnny não era. Aos 70 anos, sem renda e sem trabalho, morava numa pequena casa na Mooca, em São Paulo, com uma varandinha, uma saleta, um quarto e um arremedo de quintal.

    Na saleta, ficavam um piano de armário (quebrado, sem uso), uma mesa e uma antiga cristaleira -esta, sem um copo, taça ou garrafa nas prateleiras de vidro, mas abarrotada de papéis. Ximenes viu que eram partituras. Perguntou se podia examiná-las e Johnny disse, claro. Ximenes abriu o móvel e tirou os primeiros maços lá de dentro.

    Eram as partes originais para piano de "Escuta", "O Que é Amar" e "Ilusão À Toa", três sambas-canção com que Alf iluminou a noite carioca nos anos 50; a do baião "Céu e Mar"; as de "Seu Chopin, Desculpe" e "Fim de Semana em Eldorado", além da de "Rapaz de Bem", que sacudiram a bossa nova; e de obras-primas românticas como "Nós" e "Eu e a Brisa". Algumas dessas partituras estavam amareladas; outras, queimadas de cigarros e com marcas de copos.

    Todas tinham sua história. Falavam das pessoas que, bebendo, fumando e amando ao seu redor, um dia as ouviram pela primeira vez, nas boates do Rio ou de São Paulo, e nunca mais foram as mesmas. Encantado, Ximenes devolveu o material à cristaleira.

    Um ano depois, em nova visita, viu o móvel vazio e perguntou pelas partituras. "Ah, estavam me tomando muito espaço", disse Alf. "Dei tudo para o homem do carrinho de mão." Ximenes queria morrer -como Johnny podia ter se desfeito daquele tesouro? Alf sorriu. Para ele, na sua modéstia, aqueles papéis não significavam nada. A música estava em sua cabeça, em seus dedos.

    ruy castro

    É escritor e jornalista. Considerado um dos maiores biógrafos brasileiros, escreveu sobre Nelson Rodrigues, Garrincha e Carmen Miranda. Escreve às segundas,
    quartas, sextas e sábados.

    Edição impressa

    Fale com a Redação - leitor@grupofolha.com.br

    Problemas no aplicativo? - novasplataformas@grupofolha.com.br

    Publicidade

    Folha de S.Paulo 2024