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    Ruy Castro

    O sangue das cidades

    23/05/2016 02h00

    RIO DE JANEIRO - O motorista do Uber clicou os calcanhares, abriu-me a porta do carro preto e, enquanto eu me ajeitava no banco traseiro, forrado com couro de corça ou algo assim, ofereceu-me água, balas e revistas. Falou do seu prazer em me levar ao aeroporto Santos Dumont, perguntou se o ar condicionado estava a preceito e, depois de teclar na maquininha, informou que chegaríamos em 29 minutos e meio. Girou a chave, partiu e, com seu "aplicativo" como estrela-guia, entrou pela rua errada.

    Gelei. Tinha um avião a tomar e já estava atrasado porque, ao ir me buscar, o motorista –na verdade, o "aplicativo"– não contara com a inversão de mão na praia àquela hora. Pois o homem não apenas errou, como continuou errando, alheio aos meus apelos para virar à direita e corrigir o trajeto. Finalmente, ao se ver numa –para ele– inexplicável contramão, conformou-se em seguir minha orientação e conseguimos chegar em hora hábil.

    Vários amigos meus também passaram por isso. Os motoristas do Uber são engomados, oferecem brindes e pirulitos ao cliente e seus carros deslizam como gôndolas venezianas –mas eles não conhecem a cidade.

    Atrasado como sempre em relação às novidades, e mais ainda as que envolvem tecnologia, não gostaria de me meter na briga dos taxistas contra a concorrência egoísta, predatória e desleal do Uber, nem apoio os quebra-quebras que eles estão promovendo. Mas vai demorar até que essa nova categoria de motoristas amadores os substitua.

    Os táxis estão para as grandes cidades como o sangue para o organismo –são o seu sistema circulatório. Na verdade, sem os taxistas não haveria as grandes cidades. Foram eles que as desbravaram, estenderam os seus limites e nos revelaram os seus segredos. Os táxis falam a língua da cidade. O Uber, a de uma remota central de recados.

    ruy castro

    É escritor e jornalista. Considerado um dos maiores biógrafos brasileiros, escreveu sobre Nelson Rodrigues, Garrincha e Carmen Miranda. Escreve às segundas,
    quartas, sextas e sábados.

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