• Colunistas

    Monday, 20-May-2024 15:32:34 -03
    Ruy Castro

    A vida na terceira pessoa

    16/12/2016 02h00

    Divulgação/Chapecoense
    Zagueiro neto da Chapecoense, um dos sobreviventes do acidente na Comolbia. (FOTO: Divulgacao/Chapecoense) ***DIREITOS RESERVADOS. NÃO PUBLICAR SEM AUTORIZAÇÃO DO DETENTOR DOS DIREITOS AUTORAIS E DE IMAGEM***
    O zagueiro Neto, da Chapecoense, um dos sobreviventes do acidente aéreo na Colômbia

    RIO DE JANEIRO - Mais uma história comovente envolvendo a tragédia da Chapecoense aconteceu nos últimos dias. Foi quando o jogador Neto, um dos poucos sobreviventes da queda do avião e já saindo do estado desesperador em que se encontrava, começou a perguntar o resultado do jogo contra o Atlético Nacional e o que acontecera em campo para que ele ficasse tão machucado. Como contar-lhe que a partida nunca se realizara, que o avião caíra a poucos minutos do pouso e 71 pessoas a bordo haviam morrido, entre os quais 19 de seus companheiros de equipe?

    Para Neto — e para todos naquele voo, exceto talvez os pilotos —, as luzes do avião tinham se apagado, só isso. Nenhum deles sentiu o choque contra o morro poucos segundos depois, porque foram abençoados com a instantânea e simultânea inconsciência. Para os poucos que abriram os olhos, dali a horas ou dias, a vida ganhara um hiato que eles nunca serão capazes de preencher.

    Todos nós, alguma vez, já protagonizamos uma passagem, menos ou mais grave, de que não fomos testemunhas e não temos memória. Passei por isso há anos num episódio de saúde que durou cinco horas de inconsciência e de cujos detalhes só fiquei sabendo pela sua descrição por Heloisa Seixas em seu livro "O Oitavo Selo". É estranhíssimo. Ao ler sobre o que fizemos e não nos lembramos, a ação se transfere sem aviso para um narrador de fora — como se, de repente, passássemos a viver na terceira pessoa.

    Só nesta terça-feira (13), 13 dias depois do acidente, Neto teve conhecimento do que lhe aconteceu. Foi chocante, mas ele se agarrou a uma reação previsível e salvadora nessas situações — a de ter sido poupado porque a vida ainda espera dele coisas importantes.

    Talvez não. Talvez só espere dele que viva. O que, até para quem nunca beijou a morte, às vezes já é muito.

    ruy castro

    É escritor e jornalista. Considerado um dos maiores biógrafos brasileiros, escreveu sobre Nelson Rodrigues, Garrincha e Carmen Miranda. Escreve às segundas,
    quartas, sextas e sábados.

    Edição impressa

    Fale com a Redação - leitor@grupofolha.com.br

    Problemas no aplicativo? - novasplataformas@grupofolha.com.br

    Publicidade

    Folha de S.Paulo 2024