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    Ruy Castro

    Sem fala diante de Dick

    19/08/2017 02h00

    Folhapress
    O cantor, pianista e compositor Dick Farney, em foto de 1969
    O cantor, pianista e compositor Dick Farney

    RIO DE JANEIRO - Em 1953, Dick Farney, então o cantor mais sofisticado do Brasil, apresentava-se na boate Meia-Noite, do Copacabana Palace. Enquanto desfiava seu repertório de "Alguém como Tu", de José Maria de Abreu e Jair Amorim, "Não Tem Solução", de Caymmi e Carlinhos Guinle, e outras maravilhas, viu a uma mesa um jovem cantor em quem pressentia possibilidades. Era Cauby Peixoto. No intervalo, Dick foi falar com ele. Cauby pulou da cadeira à sua aproximação e agarrou a mão que Dick lhe estendia. Mas, ao abrir a boca, o som não saiu. Ficara sem fala diante de Dick Farney.

    Naquela madrugada, Cauby, 23 anos, era apenas um cantor brasileiro de músicas americanas, como "Blue Gardenia". O que não se sabia era que ali, à mesa, estavam um cantor que começava a descer e outro, a subir. Dick teria só mais dois anos de estrelato, enquanto Cauby mal começava o seu -"Molambo", de Augusto Mesquita e Jaime Florence, e "Conceição", de Dunga e Jair Amorim, logo entrariam para sempre em sua vida. E é possível que, dali em diante, até pela aparente diversidade de estilos, os nomes de Cauby e Dick nunca mais tenham sido associados.

    Em fevereiro de 2016, por insistência própria, Cauby colocou voz em dez canções lançadas por Dick e que ele sempre quis cantar -precisou de apenas um dia de estúdio para isto. Três meses depois, em maio, morreu, aos 85 anos. Não chegou a ouvir a beleza que produziu: o CD "Cauby Canta Dick Farney", lançado agora pela Biscoito Fino. É Cauby cantando Dick à maneira de Cauby -mas um Cauby que queria ser Dick.

    Dick morreu em 1987 e o Brasil o esqueceu. Não há um único disco seu nas lojas. As rádios o ignoram. Seus herdeiros recebem R$ 120 de direitos por trimestre -R$ 120.

    Que, ao ouvi-lo por Cauby, o Brasil redescubra Dick Farney e se torne um país melhor.

    ruy castro

    É escritor e jornalista. Considerado um dos maiores biógrafos brasileiros, escreveu sobre Nelson Rodrigues, Garrincha e Carmen Miranda. Escreve às segundas,
    quartas, sextas e sábados.

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