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    Ruy Castro

    Uma simples flor

    15/12/2017 02h00

    Elena Vettorazzo 08.10.1990/Folhapress
    Luiz Carlos Maciel, que dirige a peça "Boca Molhada de Paixão Calada", de Leilah Assunção, que estreia no Teatro Igreja.
    Luiz Carlos Maciel em retrato de 1990

    RIO DE JANEIRO - Foi há dois anos, num supermercado aqui no Leblon. Luiz Carlos Maciel estava bem à minha frente numa fila de caixa, em que éramos precedidos por três senhoras com carrinhos abarrotados. Ambos tínhamos direito aos caixas reservados aos coroas, mas as filas destes eram tão longas que valia esperar pelas madames. Eu estava comprando um suprimento de biscoitos amanteigados enriquecidos com glúten. Maciel, apenas uma flor. Uma solitária rosa vermelha.

    Ele se virou, me viu e nos abraçamos. Fomos contemporâneos nos verdadeiros primórdios do "Pasquim", em 1969. Maciel já fazia então uma página intitulada "Underground", que tratava de tudo que fosse "alternativo", contracultura, antissistema. Ele era o arauto de um mundo novo, a ser conquistado pela juventude com as novas armas.

    Essas armas eram a maconha e o LSD, a antipsiquiatria, a liberação sexual, o feminismo, o vegetarianismo, o zen-budismo e as religiões orientais e a luta contra o consumismo. Seus heróis eram os artistas e pensadores "libertários", como Bob Dylan, Yoko Ono, Timothy Leary, Norman O. Brown. Hoje, 50 anos depois, vê-se que muitas de suas bandeiras de fato se impuseram. Em outras, ele perdeu espetacularmente.

    Maciel acreditava que as drogas se limitariam às pessoas adultas e responsáveis, que as usariam para "expandir a mente" –não previu que elas se tornariam o comércio mais poderoso e canalha do mundo. O consumismo não só não acabou como passou a vender tudo que era "alternativo". E, pior, transformou a contracultura na cultura oficial e fez dela um novo e também odioso sistema.

    Todos os artistas da sua geração enriqueceram. Maciel, não. Teve de trabalhar até o fim. Morreu no sábado último, 9, aos 79 anos, e eu me pergunto quantas outras filas de supermercado ele não terá enfrentado para comprar uma simples flor.

    ruy castro

    É escritor e jornalista. Considerado um dos maiores biógrafos brasileiros, escreveu sobre Nelson Rodrigues, Garrincha e Carmen Miranda. Escreve às segundas,
    quartas, sextas e sábados.

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