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    Samuel Pessôa

    Anatomia de uma estagflação

    20/07/2014 02h00

    Na última coluna do ano passado, meu cenário sustentava crescimento da economia em 2014 de 1,8% ao ano e inflação de 6%.

    Transcorrido o primeiro semestre, parece-me que a atividade corre para fechar o ano em medíocre 1%. A inflação deve ficar em 6,5% ou 6,7% se houver aumento de gasolina de 5%. O aumento provavelmente virá após as eleições, se a presidente Dilma conseguir se reeleger.

    Ou seja, temos atividade para baixo e inflação para cima. A estagflação aprofunda-se.

    Se olharmos o cenário inflacionário, o item com maior erro de previsão foi a inflação dos serviços.

    Esperávamos no final de 2013 que, devido ao fraco crescimento da economia, o mercado de trabalho começaria a dar sinais de maior folga, o que contribuiria para moderar a inflação de serviços. Esta deveria ficar mais próxima de 7,5% do que dos 8,5% em que deverá fechar este ano.

    Nosso erro de previsão da inflação não ocorreu por causa de algum choque específico e não relacionado à política econômica. A elevação atípica nos preços de alimentos observada no primeiro semestre já foi parcialmente devolvida, enquanto a parcela do choque absorvida de forma permanente não explica a parte mais substancial da surpresa nos preços livres.

    Com relação aos itens dos serviços –hotelaria e passagens áreas– que estiveram pressionados em junho em razão da realização da Copa, a expectativa é que terão seus preços normalizados entre julho e agosto.
    Lembremos que a inflação de serviços nos 12 meses findos em junho encontra-se em 9,1%. Ou seja, para fechar o ano em 8,5%, terá que haver até o final de 2014 desinflação de 0,6 ponto percentual (ponto percentual). Isso não é nada desprezível em se tratando dos serviços, o item com maior inércia do índice. Essa redução de inflação de serviços fica por conta da devolução da inflação da Copa.

    Limpando o efeito dos choques –alimentos e Copa–, a inflação deste ano de serviços e de bens livres em geral está seguindo a do ano passado. A inflação maior em 2014 em relação ao ano passado, 6,5% ante 5,8%, deve-se ao ajuste dos preços administrados, que deverão fechar o ano com aumento de 5%, bem acima dos 1,5% de 2013.

    A forte queda da atividade que ocorreu de 2013 para 2014 até o momento não fez cócegas na inflação. A inflação parou de subir, mas não há sinais de que tenha começado a baixar.

    Minha leitura é que a desaceleração tem sido causada pela política de elevação da taxa de juros, mas também pela desorganização da atividade produtiva que resulta do regime de política econômica adotado a partir de 2009.

    Um exemplo claríssimo é a forte desaceleração da produção de veículos automotores. Seguidos planos de desoneração anteciparam consumo. Adicionalmente, uma política de fechar ainda mais o setor à importação estimula forte aumento da oferta, muito além da demanda. A carência de demanda e o excesso de oferta certamente requererão ajuste no setor. Ele vai desempregar.

    No entanto, o ajustamento e a desaceleração do setor automobilístico não seguem prioritariamente da política monetária contracionista. O setor vai mal pois a política econômica desorganizou a sua dinâmica.

    Compreende-se melhor sua perda de dinamismo como perda de produtividade e de eficiência da economia.

    A indústria automobilística é somente um exemplo do impacto desastroso de uma política microeconômica cujo princípio básico é ser discricionária e de uma política macroeconômica que reduz a previsibilidade e aumenta a expectativa de inflação. Em ambos os casos, trocam-se regimes e regras por medidas "ad hoc", sem fundamento na teoria econômica padrão.

    A demanda cai em razão da política monetária mais apertada e a oferta cai como resultado da desorganização produtiva induzida pela política econômica.

    Oferta e demanda para baixo resultam em atividade em retração apesar da estabilidade da inflação.

    O longo prazo chegou. Construímos a estagflação.

    samuel pessôa

    É físico com doutorado em economia, ambos pela USP, sócio da consultoria Reliance e pesquisador associado do Ibre-FGV. Escreve aos domingos.

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