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    Samuel Pessôa

    Sobre estelionatos eleitorais

    15/03/2015 02h00

    O segundo mandato da presidente Dilma está e ficará até seu final maculado pelo estelionato eleitoral. Estelionato profundo, no qual há total dissintonia entre fala e atos em todas as dimensões da política econômica, inclusive na ideologia que as informa.

    Há o reconhecimento por diversos analistas de que estelionato eleitoral é da regra do jogo, o que é verdade, e que é natural na democracia. Adicionalmente, o fato de a presidente não ter dobrado a aposta e estar tentando corrigir a política econômica é bom e necessário ao país.

    Outros governos praticaram estelionato eleitoral. A alteração do regime cambial na virada do primeiro para o segundo mandato de FHC é sempre lembrada como o estelionato eleitoral tucano. FHC também seria estelionatário.

    Penso ser possível discutir a tese de que houve estelionato em 98/99. A característica mais saliente de qualquer estelionato eleitoral é o populismo fiscal às vésperas da eleição, seguido de aperto após vitória eleitoral. Por exemplo, entre 2013 e 2014, o superavit primário do setor público consolidado reduziu-se de 1,9% do PIB para -0,6%, piora espetacular de 2,5 pontos percentuais do PIB! Os mesmos números para 97/98 indicam melhora de -0,9% do PIB para 0%.

    O superavit primário do governo central, que considera somente as receitas recorrentes, reduziu-se de 0,2% do PIB em 2013 para -1,2% em 2014, piora de 1,4 ponto percentual. No biênio 97/98, o superavit primário recorrente do governo central ficou estacionado em -0,4% do PIB.

    No dia 8 de setembro de 1998, após forte deterioração da situação fiscal de 1995 até 1997, o governo FHC baixou o primeiro decreto de contingenciamento orçamentário, marcando o início de um longo período de seguidos superavit primários. A Lei de Responsabilidade Fiscal e as demais instituições fiscais que temos devem muito a esse primeiro passo.

    Além dos atos, as palavras caminharam na mesma direção. No dia 23 de setembro de 1998, duas semanas antes do primeiro turno das eleições, tempo suficiente para um João Santana fazer o maior barulho, FHC, em discurso no Itamaraty, apresentou de forma muito clara a necessidade de ajuste fiscal. Vale a pena recuperar as palavras de FHC:

    "A sociedade quer que o governo faça muitas coisas, mas nem sempre dá os recursos suficientes para fazer. Por outro lado, nem sempre os governos gastam os impostos que arrecadam da forma mais eficiente. Sabemos quão ilusório é recorrer à inflação para resolver esses problemas. Imprimir dinheiro produz inflação, que é uma espécie de imposto a incidir principalmente sobre os pobres".

    "Mas hoje isso acabou. O que acontece agora, nos planos federal, estadual e municipal, é que os governos, para cobrir a diferença entre despesas e receitas, estão se endividando exageradamente. Isso não pode continuar. (...) O prejuízo tem de parar. O Estado tem de caber dentro dos recursos que a sociedade lhe dá e tem que utilizá-los da melhor forma possível."

    Resta, portanto, para caracterizar o estelionato de FHC, a alteração do regime cambial. É possível afirmar que esse ponto é suficiente para caracterizar. Discordo, mas se trata de argumentação difícil.

    Dois comentários. Primeiro, regimes de câmbio fixo ou fortemente administrado foram empregados por diversos governos latino-americanos depois de seguidas crises inflacionárias, para lidar com o desequilíbrio monetário. Em particular, até hoje o Equador não alterou seu regime de câmbio fixado à moeda norte-americana.

    Segundo, é da lógica do regime de câmbio fixo ter que sustentar com todas as forças a sua manutenção. Qualquer sinal de que o regime cambial será alterado automaticamente o destrói. Diversas economias europeias nos anos 1990 sustentaram regimes desse tipo até o último momento, com as alteridades econômicas negando qualquer mudança, para alterá-lo no dia seguinte em feriado bancário.

    Foi isso que o governo FHC fez em janeiro de 1999. Sustentou até o fim o regime. Pode ter sido estelionato. Conversa difícil. No entanto, a necessidade de ajuste fiscal já estava contratada na sociedade antes da eleição.

    samuel pessôa

    É físico com doutorado em economia, ambos pela USP, sócio da consultoria Reliance e pesquisador associado do Ibre-FGV. Escreve aos domingos.

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