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    Sérgio Rodrigues

    'Gol de bola parada': tara no sentido literal das palavras tem cura

    09/03/2017 02h00

    Alberto Estévez - 21.fev.2015/Efe
    GRA320. BARCELONA, 21/02/2015.- Los jugadores del Barcelona Leo Messi (i) y Neymar da Silva se disponen a lanzar una falta en su partido ante el Málaga, de la vigésima cuarta jornada de la liga en Primera División que se disputa esta tarde en el Camp Nou. EFE/Alberto Estévez ORG XMIT: GRA320
    Messi e Neymar se preparam para cobrança de falta em jogo do Barcelona

    Meu interlocutor, uma pessoa inteligente e bem informada, quer saber minha opinião sobre "gol de bola parada". A princípio não entendo se ele está falando de língua ou futebol. Quando enfim
    entendo, fico mais confuso ainda.

    "Se a bola está parada, como pode ser gol? Não existe gol sem movimento, existe? A bola tem que cruzar a linha!", exulta ele. Está convicto de que seus argumentos provam por 7 a 1 que "gol de bola parada" é uma locução absurda, desprovida de lógica, embora jornalistas esportivos a repitam o tempo todo.

    No início penso que meu interlocutor quer fazer graça. Demoro um pouco a me dar conta de que estou –mais uma vez– diante de um podólatra da letra.

    A quem não foi alfabetizado em futebolês convém explicar que "gol de bola parada" é aquele marcado como resultado imediato da cobrança de uma falta ou escanteio. Nesses momentos a bola está de fato parada, dando tempo aos dois times para distribuir em campo suas peças de ataque e defesa.

    Desnecessário dizer que, no próprio ato da cobrança da falta ou escanteio, a bola será posta em movimento outra vez, certo? "Gol de bola parada" é, portanto, uma expressão condensada e elíptica que poderíamos desdobrar assim: "gol (surgido de uma jogada) de bola parada".

    Não há nada errado nisso. Em primeiro lugar, está por nascer um torcedor que deixe de entender a locução "gol de bola parada". Em segundo, a economia verbal é um dos valores fundamentais em ação no movimento histórico das línguas.

    Ou Vossa Mercê –digo, vosmecê, ou melhor, você– não sabe que aquilo que pode ser dito com menos palavras e sílabas quase sempre será? Na verdade, o único erro dessa história está na formatação literal demais da cabeça do meu interlocutor, que mesmo sendo inteligente e bem informado (nenhuma ironia nisso) sucumbiu à podolatria da letra, isto é, à tara no pé da letra. Tem vasta companhia.

    Para provar que é uma furada o apego excessivo ao sentido mais literal, denotativo e chão das palavras, bastaria dizer que nem a expressão metafórica "pé da letra" pode ser tomada ao pé da letra. Desde quando letra tem pé?

    Difícil dizer se a internet fez brotar uma aguerrida geração de podólatras ou se apenas deu voz a tarados do literalismo que sempre estiveram lá, à espera de uma oportunidade. O fato é que eles têm provocado um número inédito de marolas na superfície das discussões sobre a língua.

    A tentativa de substituir a correta expressão "risco de vida" pela biônica "risco de morte" é a mais vistosa de suas obras. A implicância com a dupla negação, um traço histórico do português, também comove muita gente: "Arrá! Quem não faz nada faz alguma coisa!"

    Outras pérolas de seu repertório: "Não tire a pressão do paciente, porque sem pressão ele morre"; "Entendo você se irritar com o mau atendimento, mas se pagar geral vai ficar sem dinheiro"; "O que vem 'antes de mais nada' vem por último"; "Engenheiro elétrico dá choque".

    O et cetera é gigante. Além de ser uma perda de tempo –para eles e para todo mundo–, o empenho dos podólatras em corrigir o que não está errado deixa a língua cinzenta e inóspita, com um ventinho gelado soprando nas ruas desertas. Felizmente, doses diárias de metáforas, elipses e bom senso fazem milagre.

    sérgio rodrigues

    É jornalista e escritor, publicou "Viva a língua brasileira!" (Cia. das Letras), em 2016.
    Escreve às quintas.

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