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    Sérgio Rodrigues

    Youtuber jovem, ideia velha: dançar na norma culta não indica burrice

    06/04/2017 02h00 - Atualizado às 09h38

    Reprodução/Video
    Youtuber Marcela Tavares ensinando a falar certo em um de seus posts
    Youtuber Marcela Tavares ensinando a falar certo em um de seus posts

    O vídeo é daqueles de produção caseira típicos do YouTube: câmera fixa, cenário tosquinho com jeito de ter sido improvisado no quarto, cortes secos soluçantes. Estrela solitária do espetáculo, a jovem loura no centro do quadro está muito nervosa, histérica mesmo.

    Marcela Tavares –esse é o nome da moça– gesticula, bufa, soca o cenário e se dirige ao espectador com um espectro vocal que vai do grito ao berro, passando pelo guincho. Às vezes cola o nariz na lente para garantir que o insulto não erre o alvo: "Não se diz 'amostrar', imbecil! Se diz 'mostrar'!"

    Estamos falando de uma das maiores revelações entre os youtubers brasileiros. A série "Não seja burro", que chegou ao sexto episódio semana passada, surgiu em janeiro de 2016 com um vídeo que tem hoje mais de 1,1 milhão de visualizações. O segundo já supera as 700 mil. Os números continuam crescendo.

    Marcela não é professora de português. Em sua página no Facebook, com mais de 3,8 milhões de curtidas, apresenta-se como atriz e comediante. A intenção de usar a galhofa para suavizar a agressividade do tom fica clara nos gestos exageradamente apopléticos e num adereço inusitado: duas laranjas bem visíveis sob a blusa, sobre os seios miúdos.

    Não consegui rir. Nem um sorriso amarelo como aquelas laranjas foi possível fabricar. Na verdade, fui ficando cada vez mais triste enquanto a mulher castigava as próprias cordas vocais e os tímpanos do espectador com imperativos e ameaças:

    "Para de falar 'resistro'. É regis-trô! Re-GI-GI!"

    "Se você falar 'menas' perto de mim, acabou a tua vida!"

    "Noz com 'z' é aquela frutinha maravilhosa que vem da nogueira!"

    Se biologia é um ponto fraco da casa (noz não é fruta), a língua portuguesa não fica muito atrás. As "aulas" histriônicas de Marcela nada explicam, nada contextualizam. Não oferecem nem mesmo truquinhos de memorização. Tudo é monocórdio: é assim porque é assim, basta martelar a forma correta para que os inteligentes a decorem, e quem não decorar é burro. "Não seja burro!"

    Os erros corrigidos com tanta grosseria são quase todos superficiais, de grafia ou pronúncia, típicos de falantes de baixa escolaridade. Questões mais cascudas não entram.

    Doutores também erram à beça, dizem que alguém "possui uma dúvida" e tiram de trás da orelha um verbo tão pedante quanto inexistente para escrever "no que cerne". Mas para tratar disso seria preciso se garantir mais. Melhor esculachar os "burros".

    Ridicularizar quem comete desvios normativos tão rasteiros e óbvios apresenta vantagens num país em que os analfabetos funcionais são maioria. Quando tudo é raso, multidões entendem, concordam com você, sentem-se confortadas: "Ah, como tem gente burra no mundo! Eu não sou burro!"

    Acontece que ridicularizar quem comete desvios tão óbvios representa também uma covardia imensa num país em que os analfabetos funcionais são maioria. Eis o motivo da minha tristeza com os vídeos da moça das laranjas. O meio é moderno, a mensagem não podia ser mais bolorenta.

    Até quando vamos dar corda para a ideia de que o precário domínio da norma culta ao qual nossa educação calamitosa condena a maior parte dos brasileiros é sintoma de "burrice"? Quem será o burro, afinal?

    sérgio rodrigues

    É jornalista e escritor, publicou "Viva a língua brasileira!" (Cia. das Letras), em 2016.
    Escreve às quintas.

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