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    Sérgio Rodrigues

    Operação Fatura Exposta mostra que trocadilho não é só humor barato

    13/04/2017 02h00

    Clever Felix - 11.abr.17/Brazil Photo Press/Folhapress
    Agentes federais durante a Operação Fatura Exposta, mais um desdobramento da Lava Jato, na sede da Polícia Federal, no Rio de Janeiro
    Agentes federais durante a Operação Fatura Exposta, no Rio de Janeiro

    Fatura Exposta. O nome da operação deflagrada na terça (11) pela força-tarefa da Lava Jato no Rio, com a prisão do ex-secretário de Saúde de Sérgio Cabral, é um achado que faz pensar: por que será que o trocadilho goza de reputação tão abominável?

    A fama de "mais baixa forma de humor" é um lugar-comum tão arraigado que os adeptos da seita formam uma raça meio cabreira. Trocadilhistas não abrem mão de seu prazer, mas o cercam de pedidos de desculpa: "Com perdão do trocadilho..."

    A operação Fatura Exposta prova que um trocadilho, quando brilha, é ouro. O que já seria bom como nome de qualquer ação contra corruptos fica excelente quando se sabe que, segundo a Polícia Federal, grande parte do desvio deR$ 300 milhões ocorreu em licitações do Instituto Nacional de Traumatologia e Ortopedia (Into).

    Numa entrevista de 2008, em seu estúdio panorâmico de Ipanema, perguntei ao maior humorista brasileiro da história o que achava do trocadilho. Ouvi uma defesa eloquente: "Dizem que é a mais baixa forma de humor, mas se você tirar o trocadilho de Shakespeare, ele desaparece", disse Millôr Fernandes.

    Mestre do ofício e tradutor do dramaturgo inglês, o homem sabia do que falava. Arrematou o argumento recordando um trocadilho que, nascido numa esquecida batalha intelectual do século 20, é tão bom que pode ser apreciado por leitores de hoje, mesmo que falte intimidade com os escritores em questão.

    "O Agripino Grieco escreveu: 'Menotti del Picchia, fecha a barguilha do teu nome!'" ("barguilha" é só uma variante de "braguilha", nada a ver com trocadilho). Millôr riu muito da tirada que sabia de cor: "Isso é ótimo! Não dá para dizer de outra forma".

    Aí está a essência do trocadilho. "Não dá para dizer de outra forma" porque, mesmo quando é óbvio e grosseiro, ele se funda num equilíbrio fortuito e delicado entre som e sentido, que qualquer desvio mínimo faria desmoronar.

    O filólogo e tradutor Paulo Rónai escreveu em 1950 um artigo definitivo sobre o tema, chamado "Defesa e Ilustração do Trocadilho" (incluído em seu livro "Como Aprendi o Português e Outras Aventuras").

    Diz o erudito que o trocadilho, "como a rima, inspira-se em semelhanças formais para apontar ao espírito associações novas", aproximando-se assim da poesia: "A própria poesia (...) não é, sob certo aspecto, um complexo e requintado jogo de palavras?"

    Pode parecer exagero, mas os argumentos são convincentes. Observando que esse tipo de joguinho de palavras costuma ser intraduzível, Rónai o vê "ligado à substância íntima de cada língua".

    Num sobrevoo histórico, demonstra que o trocadilho já teve nobreza. Há fartura de elegantes exemplos bíblicos ("E também eu te digo que tu és Pedro, e sobre esta pedra edificarei a minha Igreja") e renascentistas.

    De onde vem então a pecha de "mais baixa forma de humor"? Provavelmente do exagero frívolo no qual, como viciados em drogas pesadas, certos trocadilhistas acabam por incorrer.
    Rónai cita como principal vilão o marquês de Bièvre, escritor que, às vésperas da Revolução Francesa, batizava seus personagens com nomes como "Contesse Tation" ("Condessa Tation" e também "contestation").

    "Marquês está dizendo esse cara!?", diria um discípulo do marquês. Com perdão do trocadilho.

    sérgio rodrigues

    É jornalista e escritor, publicou "Viva a língua brasileira!" (Cia. das Letras), em 2016.
    Escreve às quintas.

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