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    Sérgio Rodrigues

    Por que repetimos há séculos que os jovens vão matar a cultura escrita?

    20/04/2017 02h00

    Tony Cenicola/The New York Times
    Steven Pinker, a leading advocate of evolutionary psychology and professor at Harvard, in New York, Nov. 16, 2011. In his latest book, "The Better Angels of Our Nature," he says human brains have produced a far less violent world over time. (Tony Cenicola/The New York Times) ORG XMIT: XNYT49 ***DIREITOS RESERVADOS. NÃO PUBLICAR SEM AUTORIZAÇÃO DO DETENTOR DOS DIREITOS AUTORAIS E DE IMAGEM***LEGENDA DO JORNALlinguista e neurocientista Steven Pinker
    O linguista e psicólogo Steven Pinker

    Na plateia do debate na Bienal do Livro de Fortaleza, segunda-feira (17), a jovem estudante de jornalismo pede a palavra para se queixar da inapetência das novas gerações para a leitura de textos com mais de cinco linhas, algo que ela atribui à cultura digital. Onde vamos parar?

    Menos jovem, respondo que, quaisquer que sejam os problemas atuais de leitura e concentração, convém ter cuidado com visões apocalípticas.

    O meio eletrônico dominante na minha infância era ágrafo. Quando a televisão reinava, ninguém –excetuados compromissos escolares ou profissionais– precisava ler ou escrever absolutamente nada.

    O mundo era cada vez mais audiovisual. Quem negaria naquele momento que a palavra escrita, se não estava com os dias contados, teria uma triste sobrevivência artificial em santuários frequentados por gatos pingados?

    A internet e as mensagens de texto revalorizaram a escrita de forma surpreendente e cabal. Claro, não se trata mais da velha escrita, os códigos são outros. Mas qualquer visão de futuro que não levar isso em conta será incompleta.

    Mais uma vez, a perspectiva histórica é a melhor vacina contra uma falácia que o senso comum vive tentando nos impingir: o da decadência irremediável da língua e da escrita.

    Parece intuitivo. Antes havia civilização, agora estamos à beira da barbárie. Tínhamos o paraíso; caímos em desgraça. Trata-se de um mecanismo psicológico imemorial, com ramificações religiosas. A catástrofe atinge todo mundo, mas quem a denuncia sente algum conforto moral.

    Em seu livro "Guia de Escrita - Como Conceber um Texto com Clareza, Precisão e Elegância" (editora Contexto), o linguista e psicólogo Steven Pinker rebobina de forma deliciosa a história das visões apocalípticas sobre o inglês.

    Poderia partir de hoje, mas opta por começar em 1978 ("milhões de asneiras e descuidos de gramática, sintaxe, fraseologia, metáfora, lógica e senso comum") e recuar até 1478 ("nossa língua... difere de longe daquela que era falada e usada quando eu nasci", escreveu um tipógrafo).

    Pinker ainda vai além. Chega até milhares de anos atrás ao afirmar que "algumas das tabuletas decifradas do sumério antigo incluem queixas sobre a deterioração da habilidade de escrita dos jovens". O sumério é a língua escrita mais antiga de que se tem notícia.

    Conclusão do linguista: "Na realidade, o pânico moral sobre o declínio da escrita pode ser tão antigo quanto a própria escrita". Seria difícil expor de modo mais claro a vaziez do bordão preferido dos apocalípticos: "Antigamente, havia respeito às regras".

    O fato é que as "regras" da norma culta –como as de todas as variedades da língua– mudam sem parar, lentamente, mas com efeitos dramáticos a longo prazo. Nossa eterna ladainha de decadência é um espetáculo tão risível quanto o de um cachorro correndo atrás do próprio rabo.

    Reconhecer isso não significa negar os problemas e desafios ligados à escrita e à leitura. Também não quer dizer abandonar o apreço pela língua elegante, literária, cultivada –como Pinker não abandona.

    O Brasil precisa de mais educação, não de menos. Só não vale suspirar pelo tempo em que as bacharelices afetadas do Hino Nacional passavam por bom estilo e os analfabetos eram 80% da população.

    sérgio rodrigues

    É jornalista e escritor, publicou "Viva a língua brasileira!" (Cia. das Letras), em 2016.
    Escreve às quintas.

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