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    Sérgio Rodrigues

    A pulsão de morte da linguagem

    27/07/2017 02h00

    Damon Winter/The New York Times
    William Zinsser, 90, escritor de 'Como Escrever Bem
    William Zinsser (1922-2015), autor de 'Como Escrever Bem', em sua casa em Nova Iorque

    Estarei, estou ou estive (depende da hora em que o leitor leia estas palavras) hoje às 10h na Casa Folha, em Paraty, conversando com Mariliz Pereira Jorge, sob a mediação de Sérgio Dávila, sobre "Como escrever bem".

    Eu sei: o nome da mesa é ambicioso à beça. O que restaura uma certa humildade é saber que se trata de uma referência ao bom guia de escrita homônimo do jornalista americano William Zinsser, que já comentei nesta coluna.

    Um dia desses, folheando o livro para reativar a memória, uma frase atraiu minha atenção: "Se um escritor ignora alegremente que os clichês equivalem ao beijo da morte, se ele (...) não faz o menor esforço para evitá-los, podemos inferir que não entendeu o que dá vida a um texto".

    A afirmação, que não me impressionou da primeira vez, soa espantosamente verdadeira na releitura. Gosto da forma como parece escalar nossa tendência universal ao clichê - isto é, ao lugar-comum, ao chavão, à ideia pronta, à metáfora fóssil - não só como defeito de estilo, mas como a própria pulsão de morte da expressão.

    Se a linguagem tem por definição sua cota de redundância, pois do contrário ninguém se entenderia, uma medida de originalidade e espanto é fundamental para animar as palavras, para fazê-las saltar do zunzum indistinto que nos entedia e ameaça nos afogar. Vida e morte em luta perpétua no coração do texto.

    Sempre restará aquela questão fundamental: as dosagens da mistura são subjetivas, como, no fim das contas, quase todas as decisões que se referem à escrita.

    Cada escritor tem um grau de tolerância ao caminho expressivo já trilhado por outros, num arco em cujos extremos estão os que levam a busca da originalidade ao paroxismo da maluquice hermética e os que chafurdam - "alegremente", segundo Zinsser - na lagoa poluída do clichê.

    A sensibilidade com que os leitores julgam essa mescla também varia, claro. Algum tempo atrás publiquei no Facebook uma condenação do clichê toda feita de clichês: "É preciso abrir o olho com o lugar-comum. Ele dá mais que chuchu na cerca no texto do escritor que não faz das tripas coração para reduzi-lo a pó".

    A brincadeira ia em frente - ou em parafuso: "De repente, num piscar de olhos, é tiro e queda: lá está o clichê, a frase feita, a expressão convencional deitada no berço esplêndido das mal-traçadas".

    Um monte de lugares-comuns depois, o gran finale assegurava que o clichê "está sempre pronto a nos privar na calada da noite e com um drible seco e desconcertante de nosso mais precioso bem, a originalidade da expressão, nos deixando de mãos abanando e a ver navios no inverno tenebroso da linguagem".

    Recebi por esse texto um bom número de comentários de apoio enfático, o que não surpreende: pouca gente está disposta a defender o clichê em público, a fama do bicho é ruim demais. Curioso foi perceber que, claramente, alguns dos que concordaram não tinham entendido que o texto era uma contradição explícita entre conteúdo e forma, também chamada ironia.

    Em outras palavras, o sujeito endossava em tese a crítica aos chavões, aos ditos velhos de décadas ou séculos, mas era incapaz de detectá-los, mesmo que eles viessem na sua direção como uma horda de zumbis. Ninguém disse que seria fácil. Nem o Zinsser.

    sérgio rodrigues

    É jornalista e escritor, publicou "Viva a língua brasileira!" (Cia. das Letras), em 2016.
    Escreve às quintas.

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