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    Sérgio Rodrigues

    A.I. faz cada vez mais o trabalho humano, mas fará o de Machado?

    03/08/2017 02h00

    Isaac Lawrence/AFP
    TOPSHOT - "Han the Robot" waits on stage before a discussion about the future of humanity in a demonstration of artificial intelligence (AI) by Hanson Robotics at the RISE Technology Conference in Hong Kong on July 12, 2017. Artificial intelligence is the dominant theme at this year's sprawling RISE tech conference at the city's harbourfront convention centre, but the live robot exchange took the AI debate to another level. / AFP PHOTO / ISAAC LAWRENCE ORG XMIT: IL001
    "A inteligência artificial torna o trabalho humano cada vez mais obsoleto; 'Brás Cubas' é o limite?"

    Nossa espécie anda obcecada com a inteligência artificial, e isso é natural. Vemos com angústia novas geringonças e algoritmos se encarregarem de um número cada vez maior de atividades que eram desempenhadas por gente.

    Ficaremos todos desempregados? Ou, em termos mais cabeçudos, qual é o limite para a obsolescência humana, se é que há um?

    Na área que interessa mais de perto à coluna, já existem programas capazes de produzir com razoável eficiência textos básicos, denotativos, em ordem direta. Notícias secas de jornal, por exemplo.

    Será que isso nos autoriza a supor que surgirá um romance escrito por um computador e capaz de ombrear artisticamente com "Memórias Póstumas de Brás Cubas"? Em caso positivo, quando?

    Não faltam entusiastas da inteligência artificial para apostar que as respostas a essas perguntas são "Sim, claro!" e "Em breve". Contudo, há evidências de que a notícia de jornal e o romance machadiano não são dois pontos numa linha reta de complexidade crescente. São planetas distintos.

    Em artigo de abril na revista americana "Wired", bíblia das novas tecnologias que ajudou a fundar, Kevin Kelly desafia o coro empolgado –ou apocalíptico– dos artificialistas. Seu ceticismo dá o que pensar.

    O artigo, "O mito de uma A.I. super-humana", é longo e merece leitura integral. Dedica-se a desmontar ponto a ponto algumas suposições acríticas que acompanham a crença num futuro inteiramente dominado pela inteligência artificial. Reproduzo as três "verdades" que interessam aqui:

    1. A inteligência artificial já está se tornando mais inteligente do que nós.

    2. Vamos transformá-la numa inteligência de alcance universal, capaz de desempenhar qualquer função, como a nossa.

    3. Podemos fabricar inteligência humana com silício.

    Kelly sustenta que todas essas ideias são mitos. Uma paráfrase de seus argumentos:

    1. Não sendo a inteligência uma dimensão única, mas um conceito infinitamente complexo que estamos longe de mapear, "mais inteligente do que os humanos" é uma ideia sem sentido. Esquilos, por exemplo, têm uma memória que humilha a nossa para os muitos milhares de pontos onde enterraram nozes.

    2. As pessoas não têm mentes de alcance universal e os computadores também não as terão. Quanto mais genérica e multifuncional for uma inteligência artificial, pior será seu desempenho em tarefas específicas.

    3. Pensamos com nossos cérebros e nossos corpos, auxiliados por uma rede de impulsos bioquímicos que guiam decisões –inclusive na forma de "intuições". A imitação desse tipo de pensamento por outros meios será limitada pelo custo, e a principal vantagem da inteligência artificial é ser distinta da nossa.

    Não tenho uma resposta para a charada do rival artificial de Machado. Desconfio, porém, que os argumentos de Kelly situem a ideia num horizonte puramente mítico.

    Em 2012, o crítico canadense Stephen Marche publicou uma boa reflexão sobre os limites do "big data" nos estudos literários. "A literatura", escreveu, "não pode ser tratada expressivamente como informação. Literatura não é informação. É o contrário de informação".

    Não vou dizer que o futuro super-humano seja uma balela. Que sei eu? Só acho que a literatura, sendo radicalmente humana, já não caberá ali.

    sérgio rodrigues

    É jornalista e escritor, publicou "Viva a língua brasileira!" (Cia. das Letras), em 2016.
    Escreve às quintas.

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