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    Sérgio Rodrigues

    Chico e os nazistas: o papo nas redes tem feito pouco sentido

    17/08/2017 02h00

    Ricardo Borges/Folhapress
    A obra de Chico Buarque foi considerada a mais complexa pelo ranking decorrente da pesquisa
    Chico Buarque é um dos alvos favoritos das discussões nas redes sociais

    Haverá algo em comum entre a polêmica em torno de um verso do Chico Buarque e a discussão sobre o nazismo ser ou não ser "de esquerda"? Digo, algo além do fato de serem tais tópicos ervas daninhas cognitivas que vicejaram recentemente na internet, esse imenso jardim botânico de mato?

    É difícil falar do contemporâneo, do agora. Às vezes gosto de fazer um exercício de imaginação: que elementos destacaria um escritor do futuro que quisesse reconstituir a atmosfera cultural do nosso tempo?

    A maior mágica da ficção é a capacidade de criar um universo com três varetas, dois palmos de tecido e um pedaço de barbante. Mais do que possível ou desejável, essa miniaturização é obrigatória.

    O uso de poucos elementos escolhidos com arte está na base da criação de mundos imaginários. O mundo real é vasto e tumultuoso demais para fazer sentido.

    Ao ser tratado como "de época", o presente absurdo em que estamos mergulhados, com o nariz grudado demais na tela para discernir o plano geral da obra, pode revelar linhas de força interessantes.

    Desconfio que uma delas, segundo aquele ficcionista ficcional que escreve seu romance histórico em, digamos, 2117, seja a alarmante perda de foco que a comunicação em rede trouxe aos nossos papos.

    Não se trata de fazer o elogio nostálgico da velha comunicação de massa, com sua via de mão única entre emissor e receptor, vista hoje –com razão– como pouco democrática.

    No entanto, passou da hora de dar por encerrado o oba-oba que marcou os primeiros anos do século 21, com sua crença ingênua no voluntarismo amador como produtor dos conteúdos necessários ao aprimoramento da vida no planeta.

    É importante reconhecer que a passagem do vertical para o horizontal, do concerto estruturado de vozes "eleitas" para o zunzum indistinto das multidões, trouxe novos problemas e desafios cascudos.

    A discussão pautada por redes sociais e caixas de comentários tende a ser filistina e infantil. Pegou a deixa dos estudos culturais e, barateando um pouco mais o que nunca foi tão caro, acha que a arte se resume ao conteúdo sociológico excretado involuntariamente por um "lugar de fala".

    Essa é a parte do filistinismo, da insensibilidade ao que a arte tem de propriamente artístico. O infantilismo aparece nas "lacrações" que vêm em seguida. E tome de "ai, que decepção, Chico!"

    Além de filistina e infantil, a discussão pautada por redes sociais e caixas de comentários sabe ser bizantina e desonesta. Dá importância descabida a filigranas tiradas de seu contexto histórico –"oh, a palavra socialismo está embutida na palavra nazismo!"– em nome de um "debate ideológico" que de debate não tem nada.

    Nosso escritor do século 22 é um artista sério e não quer atribuir nenhum desses problemas à falta de caráter ou de inteligência deste ou daquele personagem. Por temperamento, acha que a maioria da humanidade tem as melhores intenções.

    Sabe, porém, que o tal Zeitgeist, o poderoso Espírito do Tempo, leva tudo de roldão. Não faz ideia de como um país esfolado, rachado, exausto e desprovido de um mínimo projeto de nação vai chegar a um acordo consigo mesmo em meio a uma barulheira dessas.

    Tentará pensar em algo quando for a hora de escrever esse capítulo.

    sérgio rodrigues

    É jornalista e escritor, publicou "Viva a língua brasileira!" (Cia. das Letras), em 2016.
    Escreve às quintas.

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