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    Sérgio Rodrigues

    Texto fofo do discurso de venda hipster atropela o senso de ridículo

    31/08/2017 02h00

    Reprodução/Flickr
    "Projeto Gir leiteiro e seus cruzamentos: Polo Nordeste Paulista - Mococa VACAS GIRSEY PRODUZEM MAIS LEITE E CRIADOR TEM MAIS ANIMAIS PARA VENDA A idade média ao primeiro parto das vacas Girsey (cruzamento das raças Gir, zebuína, e Jersey, taurina), na tradicional bacia leiteira de Mococa (SP), é de 28 meses, ou seja, quase 20 meses abaixo da média nacional, o que diminui o custo de criação de novilha (começa a produzir cedo) e aumenta a vida útil do animal. Com isso, a vaca produz mais leite na vida útil e o criador passa a ter mais animais para venda, uma vez que é maior a taxa de nascimentos e menor a taxa de reposição..
    "O texto fofo pode estar impresso na caixa de leite, tentando nos convencer de que o líquido jorrou das tetas de duas vacas que o seu Zé da Nena ordenha com amor toda manhã em seu sítio"

    O texto fofo pode estar impresso na caixa de leite, tentando nos convencer de que o líquido ali contido jorrou das tetas de duas vacas simpaticíssimas, Mimosa e Malhada, que o seu Zé da Nena ordenha com amor toda manhã em seu sítio de Bichinho.

    Crédulo e confiante na credulidade do leitor, o texto fofo ignora a incongruência entre a cena pastoril e seu suporte industrial, adornado com selo do Ministério da Agricultura e letras miúdas falando em estabilizantes hostis à pureza láctea de Mimosa e Malhada, como o trifosfato de sódio.

    Também se encontra o texto fofo em embalagens de suco industrializado, a nos garantir que sorveremos o sumo de frutas colhidas por seu Pádua e dona Carlota em seu pomar de Itapecerica da Serra, depois da curva do rio, ali onde cantam mais alto os sabiás.

    Esses exemplos podem sugerir que o texto fofo só brota no mercado de alimentos, mas isso não é verdade. O que comemos e bebemos tem sido embalado em imensa fofura textual, mas nada impede um xampu, por exemplo, de se expressar assim (e agora não faço uma caricatura, mas copio palavra por palavra): "Relaxa, darling! Com nosso tratamento que não cresce pelo, mas cabelo (hehe), sua linda cabeleira será o antes e depois."

    Sim, alguns textos fofos são tão mal escritos que jogam no ralo a planejada fofice, mas isso não é uma regra. Sua única obrigação é ser, com perdão da tautologia, fofo. Tentar convencer o consumidor de que aquele produto de massa vendido para multidões sem rosto foi feito com carinho só para ele e por gente como ele, que tem seu jeito e fala sua língua.

    É claro que no fundo nunca foi outro o desafio do papo de vendedor em todos os tempos e do discurso publicitário de um século para cá. O potencial comprador deve ser abordado como gente –de preferência "gente como a gente"– e não como alvo a ser abatido. É preciso criar um clima, um vínculo emocional. Ou, como está na moda dizer hoje, uma narrativa.

    Isso foi ficando mais difícil à medida que se agigantavam os mercados. No último quarto do século 20 chegamos àquela situação absurda em que, como apontou o escritor americano David Foster Wallace em seu famoso ensaio sobre a ironia, "produtos alegadamente capazes de distinguir os indivíduos da multidão são vendidos para imensas multidões de indivíduos."

    O texto fofo é uma resposta desesperada a essa contradição. O que o torna diferente dos velhos pregões de venda são os altíssimos teores de cara de pau exigidos pelas juras de autenticidade, maneirice e paz entre os seres humanos que compõem seu trololó hipster. Quem acreditaria nesse caô?

    Uma criança, claro. Uma criança que ainda acredita no Coelhinho da Páscoa acreditaria. Eis por que o texto fofo é sobretudo, desafiando a verossimilhança e o senso de ridículo, profundamente infantil e infantilizante. "Relaxa, darling!"

    Quem ainda não se convenceu de que há na floresta da comunicação um novo animal chamado texto fofo deve consultar o site do banco digital para jovens que o Bradesco lançou há três meses, chamado Next. Lá se leem coisas assim: "Um jeito lindão e fácil de ver como tá seu dinheiro. Sem surpresinha." "Junta a grana da galera sem perrengue." "Você merece todo o nosso <3". Não é fofo, gente?

    sérgio rodrigues

    É jornalista e escritor, publicou "Viva a língua brasileira!" (Cia. das Letras), em 2016.
    Escreve às quintas.

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