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    Sérgio Rodrigues

    Tragicomédia é o registro artístico que melhor traduz o Brasil de hoje

    23/11/2017 02h00

    O escritor israelense Amós Oz costuma dizer que tragédia e comédia, que um dia viu como dois planetas distantes, são apenas janelas das quais se descortina a mesma paisagem. A diferença entre cômico e trágico está mais em nosso olhar do que no mundo.

    Também podemos dar um passo atrás e enquadrar a paisagem das duas janelas ao mesmo tempo. Tragicomédia é o nome desse olhar perturbador. Defendo a tese de que nenhum outro enxerga melhor o Brasil de hoje.

    Convém nos entendermos. Falo da tragicomédia no sentido mais concentrado. Uma alternância de tons é comum na arte dramática desde a antiguidade. Aperfeiçoados por Shakespeare, foram parar nos manuais de Hollywood os momentos de alívio cômico que temperam dramas e as cenas lacrimosas entremeadas em histórias engraçadas.

    Na tragicomédia pura, a interação entre os elementos é química e não limitada à alternância, aqui um sorriso, ali um aperto no coração. Os dois agem ao mesmo tempo, violentos e inseparáveis.

    Talvez por denunciar nosso pacto íntimo com a crueldade, o riso torna mais sombrio o que por si já seria terrível. E o arrepio do horror reveste a graça de um sabor perversamente delicioso, como o de um queijo bolorento.

    Para entender por que a tragicomédia é o registro artístico por excelência do Brasil de hoje, basta olhar em volta. Os tipos boçais que tomaram de assalto nossa vida pública são ridículos. As consequências de suas ações, tenebrosas.

    Doutores em esperteza burra e má-fé, os exploradores da ignorância da turba mantida há séculos em estado de semianalfabetismo sempre assombraram nossa história com suas carantonhas lombrosianas, mas não creio que um dia tenham dominado a cena de forma tão absoluta.

    Além disso, a tragicomédia, com sua mistura subversiva de reações morais contraditórias, demasiado humanas, é um bom antídoto contra a santimônia simplória que predomina hoje nos dois lados da cerca ideológica.

    Se o Brasil atual é tragicômico até a medula, por que será que o registro tem presença tão modesta em nossas artes? Claro que há exceções, mas, em geral, quando não somos exaltadamente líricos, tendemos ao melodrama. Se rimos, damos preferência à comédia ligeira ou ao pastelão.

    Ainda bem que Fernanda Torres parece disposta a suprir sozinha nosso déficit histórico de tragicomédia. Depois de uma estreia impressionante como assassina serial de velhinhos em "Fim", a atriz-escritora periga virar escritora-atriz com "A Glória e seu Cortejo de Horrores".

    Contada contra o pano de fundo da história cultural brasileira do último meio século, a saga do ator Mário Cardoso (nada a ver com o velho galã homônimo), do anonimato à glória e daí à ruína, tem um grau de acidez muito superior à média nacional. Fernanda fala de um mundo que conhece bem e com uma voz malvada que é só dela.

    Eu sei, faz tempo que a ficção literária é uma arte periférica. No entanto, somando o nomão que trouxe pronto de palcos e telas ao talento investido numa forma generosamente comunicativa de literatura, Fernanda vende como ninguém (180 mil exemplares de "Fim").

    Sim, o Brasil vai se ver no espelho de seu novo, hilário e crudelíssimo romance. E vai ser bom para ele, viu?

    sérgio rodrigues

    É jornalista e escritor, publicou "Viva a língua brasileira!" (Cia. das Letras), em 2016.
    Escreve às quintas.

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