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    Sérgio Rodrigues

    Símbolo de tempos menos ansiosos, a velha carta tem muito a nos ensinar

    14/12/2017 02h00

    "Como as pessoas escreviam melhor antigamente!" Será mesmo?

    A admiração pela suposta superioridade textual de outros tempos tem sido uma reação comum ao recém-lançado "Cartas brasileiras", livro em que, como organizador, proponho um passeio pela história das missivas no país desde Pero Vaz de Caminha.

    Como há no livro, entre 80 cartas de todos os tempos e temas, os mais variados níveis de domínio linguístico e até um caso de analfabetismo quase absoluto (o bilhete de Lampião ao prefeito de Mossoró), suponho que o espanto esteja meio desfocado.

    Sim, há indícios de que a escola brasileira, nos tempos pré-universalização do ensino e pré-rebaixamento da carreira de professor, ensinava a escrever melhor do que hoje. A elegante carta endereçada em 1959 por uma adolescente paulistana a Juscelino Kubitschek, pedindo ajuda com seu dever de casa sobre Brasília, parece ilustrar isso.

    Mesmo assim, desconfio que o espanto do primeiro parágrafo tenha menos a ver com competência textual do que com um poder sutil entranhado no próprio tecido do gênero epistolar: a lentidão.

    Cartas eram –e escolho o verbo no pretérito porque seu tempo passou, embora o correio permaneça ativo– lentas por natureza. Escrevia-se devagar, não raro ao longo de vários dias, com releituras e emendas. Por que correr se a mensagem, de todo modo, demoraria dias, semanas, quem sabe meses a chegar ao destinatário –se chegasse?

    Cápsula de tempo, cada carta que cumpria seu destino tinha algo de heroico e de solene, ainda que fosse a mais singela das mensagens. Era preciso aproveitar cada pequena vitória contra a distância e o isolamento, leis implacáveis do mundo pré-digital.

    Por isso era comum que os missivistas caprichassem no estilo, empregassem fórmulas de cortesia, dessem notícias do tempo (atmosférico), da saúde, de seu estado emocional no momento da escrita.

    Costumamos pensar que agiam assim por terem tempo de sobra, lá em suas quadras da história em que "a vida era menos corrida". Contudo, a questão vai além disso.

    O império da lentidão operava de muitas formas. Sendo uma completa abstração o presente do encontro entre remetente e destinatário, cada um aprisionado em seu próprio tempo, cabia a um paciente trabalho de escrita conjurar sua ilusão.

    O vagar, a paciência e o fôlego –todos eles artigos em extinção na contemporaneidade digital– se revelam assim menos "naturais" do que costumamos imaginar. Eram armas estratégicas. Não excluíam a ansiedade, droga em que hoje mergulhamos de cabeça, mas a mantinham estoicamente sob controle.

    Filha anfetamínica do telegrama e não da carta, a mensagem eletrônica instantânea é, em qualquer das formas que assume, tão superior como meio de comunicação que nem precisa de defesa. Se a tecnologia estivesse ao alcance de Caminha, sua carta a d. Manuel seria uma série de zaps.

    Reconhecer essa superioridade não significa ignorar que algo se perdeu. Se a tendência atualíssima de revalorizar o que existia antes do tsunami digital for mais que um modismo, como sustenta o jornalista David Sax em seu livro "The Revenge of Analog" (A Vingança do Analógico), as cartas terão muito a nos ensinar.

    Reprodução
    Fac-símile da carta de Pero Vaz de Caminha a o rei D. Manuel I
    Fac-símile da carta de Pero Vaz de Caminha a o rei D. Manuel I
    sérgio rodrigues

    É jornalista e escritor, publicou "Viva a língua brasileira!" (Cia. das Letras), em 2016.
    Escreve às quintas.

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