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    Sérgio Malbergier

    Guerra cultural

    02/05/2013 03h00

    Dez anos de PT deixam marcas profundas na vida brasileira. A cultura, pilar histórico do petismo, não poderia sair ilesa, muito pelo contrário.

    O governo, em suas múltiplas manifestações, é o maior patrocinador de arte, cultura e entretenimento do país. E nunca antes patrocinou-se tanto, produziu-se tanto e consumiu-se tanto via concessões fiscais ou patrocínios oficiais.

    Assim como o PT foi o partido que mais capitalizou o recedido sucesso do capitalismo brasileiro, é também o PT que mais capitaliza o boom, digamos, cultural que vivemos.

    O PT tem grande inteligência social, pratica um populismo cada vez mais afiado e arrecada uma montanha inédita de dinheiro para gastos sempre crescentes. O avanço do PT pela cultura (reforçado pela sua patrulha internética) é natural e eficiente. Sufoca ainda mais a direita exterminada.

    A cultura brasileira sempre foi esquerdocêntrica, com ilustríssimas exceções. A estupidez também cultural da ditadura só reforçou esse desequilíbrio. Agora, abarrotada de recursos e poder, a esquerda promove revisão abrangente do imaginário nacional, centrada na narrativa binária do oprimido vítima do opressor, do povo vítima da elite. Uma visão primária, mas com pé na verdade.

    O país pede uma nova história. Minha geração, por exemplo, cresceu vendo na TV as aventuras do pioneiro americano Daniel Boone em Kentucky ao invés do bandeirante Raposo Tavares em São Paulo. Nomes indígenas como Comanches e Apaches eram muito mais familiares do que Tupinambás e Caiapós. Há, portanto, avenidas abertas para compor uma nova história.

    O filme "Uma História de Amor e Fúria", de Luiz Bolognesi, em cartaz pelo Brasil, tem essa ambição. O longa de animação povoa nossa mente com imagens estilizadas e conflitos maniqueístas. O branco, rico e poderoso aparece sempre como o demônio, e o povo, como herói digno resistindo como pode ao impiedoso opressor.

    O filme acompanha o espírito de um índio reencarnado ao longo de momentos marcantes da narrativa heroica brasileira como vista pela esquerda. Dos massacres de índios pelos portugueses no Brasil colonial à revolta da Balaiada no Maranhão (anos 1830, onde Duque de Caxias entra na história não mais como herói, mas vilão sanguinário), à luta armada e tortura da ditadura militar, ao Rio de Janeiro futurista, em 2096, dominado por milícias privadas com ações na Bolsa de Valores (o mercado sempre a serviço do inimigo), "Amor e Fúria" é um filme ambicioso e estimulante, com uma trilha sonora estupenda e a voz frágil de Selton Mello humanizando o desenho.

    A esquerda tem todo o direito e o dever de produzir seu libelos e sua visão do mundo e do Brasil, do passado e do presente.

    A direita, onde também não faltam recursos, precisa ter a coragem de encontrar seus meios de produção cultural e artística. Mas no Brasil de hoje, quem tem coragem?

    O deputado Marco Feliciano, por exemplo, não preside a Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara apesar do arranjo político brasileiro, mas por causa dele. Protestar contra Feliciano estar onde está e não protestar contra o arranjo político que o colocou lá mostra os limites intelectuais e oportunistas do protesto.

    São pouquíssimos os artistas que se opõem ao poder vigente e às repartições de aprovações de projetos. Existe uma nova mordaça, invisível, quando precisamos de uma guerra cultural. É o tipo de guerra necessária, pois só terá vencedores.

    sérgio malbergier

    Escreveu até abril de 2016

    É consultor de comunicação. Foi editor de "Dinheiro" e "Mundo".

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