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    Sérgio Malbergier

    O cinismo torturante sobre a tortura

    03/04/2014 09h48

    O brasileiro nunca foi muito sincero, muito direto na conversa. Como sabem os estrangeiros que conosco convivem, quando dizemos enfaticamente "vamos nos ver" geralmente estamos dizendo "não vamos nos ver".
    Essa maciez brasileira expressa falta de objetividade, foco e eficiência. Ganhou até neologismos anglicistas como "embromation" e "enrolation".

    A paixão nacional pela insinceridade se reflete em todas as esferas da vida, pessoal, profissional e pública. Os políticos, como sempre no Brasil, são os que dão os piores exemplos. Basta ver o sensacional zigue-zague do deputado André Vargas ao falar do uso que fez do jato de um doleiro notório. Ou as ameaças generalizadas de CPIs no Congresso.

    Muitos podem dizer que o cinismo exacerbado é sinal dos tempos ou que é a alma da política ou fato da vida. E que uma boa dose de cinismo é até saudável diante de tanto "embromation". Mas, no extremo, como vemos no Brasil, atesta a falta de confiança nas pessoas e no futuro ou a confiança cega na ignorância alheia.

    A liberdade de expressão, a imprensa livre e as novas armas de comunicação em massa são os melhores antídotos contra o cinismo como modelo de opressão e dominação. Por isso, pela falta dessas liberdades e capacidades, as duas longas e tenebrosas décadas da ditadura deram grande impulso ao cinismo nacional.

    O discurso ufanista da ditadura (aliás, com muitas semelhanças com o discurso oficial de hoje) e a censura implacável do período aprofundou entre nós nossa natural tendência a não dizer ou enxergar a verdade de forma clara e objetiva.

    O intenso e necessário debate sobre os 50 anos do golpe de 1964 mostrou, por exemplo, que a sociedade brasileira evoluiu em relação à tolerância à tortura oficial, esse horror medieval praticado de modo hediondo pelo regime militar. Mas de forma seletiva e cínica.

    Embora até as Forças Armadas finalmente mostrem disposição a investigar esses crimes contra a humanidade de décadas atrás, todos sabemos que a tortura física segue praticada e tolerada no país.

    Segundo levantamento recente, 816 casos de tortura foram relatados entre 2011 e 2013 no disque-denúncia da Secretaria Nacional de Direitos Humanos, com acusações contra 1.162 agentes do Estado _316 só no ano passado. Especialistas dizem que o número pode conter falsas denúncias, mas revela que a situação segue epidêmica num crime tão hediondo cometido pelas próprias autoridades constituídas em plena democracia, prova cabal de nosso relativismo moral.

    Ao contrário da tortura da ditadura, praticada contra militantes da classe média que hoje inclusive ocupam os cargos mais altos da República, a tortura nossa de cada dia é praticada por autoridades policiais civis e militares contra os brasileiros e as brasileiras mais excluídos da cidadania.

    Tem toda justeza a grita contra a tortura praticada nos porões da ditadura décadas atrás. Mas onde está a indignação com a tortura praticada hoje? Ela é muito mais deletéria ao país do que aquela, pois segue curvando nossa civilização para baixo. Uma banalidade do mal muito bem representada pelo ministro da Justiça, que chamou nossas prisões de inferno e não fez nada para mudá-las. Afinal, defender preso não dá voto.

    sérgio malbergier

    Escreveu até abril de 2016

    É consultor de comunicação. Foi editor de "Dinheiro" e "Mundo".

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