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    Silvia Corrêa

    Um último gesto de amor

    19/04/2015 02h00

    Quarta, 25/3, quase meia-noite. O jardim estava escuro, mas pude perceber que Jade caminhava entre as plantas. O andar era compulsivo, sem rumo, por vezes em círculos.

    Fui invadida por um misto de medo e tristeza. Será que nossa batalha estava chegando ao fim?

    Três meses antes, os rins de minha velha golden retriever tinham dado claros sinais de insuficiência. Ela parou de comer e a resposta veio nos exames de sangue: estava intoxicada por compostos que o rim deveria excretar, mas que, incapaz, deixava acumular no organismo.

    Iniciamos tratamento intensivo que, entre outras medidas, incluía administração de 1,5 litro de soro ao dia. As veias logo se mostraram frágeis e doloridas, mas, a despeito do desconforto, Jade voltara a correr, comer, latir. Tudo parecia relativamente estável. Até aquela noite.

    Ilustração Tiago Elcerdo

    Coloquei-a para dentro de casa e percebi que respirava com dificuldade. Liguei o ar-condicionado. Não era calor. Se os anos de estudo permitiam tentar tratá-la, também davam certeza que o cenário era sombrio.

    Após horas de insônia, fomos ao hospital pela manhã. Um a um, exames descartaram as causas possíveis. Nada metabólico, nada no tórax. Sobrara um dos piores diagnósticos: Jade tinha algo na cabeça —talvez um tumor, talvez um acidente vascular— que não a deixava respirar e alterava seu comportamento.

    Voltamos para casa. Era noite de quinta. Decidi sedá-la. Sob o efeito de tranquilizantes e analgésicos ela dormia e eu tinha a esperança de que pudesse acordar melhor.

    Mas Jade só piorava. Os rins não resistiriam à anestesia para uma ressonância, muitos menos a uma quimioterapia. Tudo que poderia pensar como alternativa parecia só servir a prolongar o sofrimento. A vida, tal como Jade gostava de vivê-la, infelizmente não era mais possível.

    Na manhã de domingo, quando ela já não conseguia se levantar ou tomar água sozinha, decidi pela eutanásia. Não tenho dúvida: a injeção que parou seu coração matou também uma parte de mim. Mas libertar aquela alma alegre e ativa daquele corpo cheio de limitações foi meu último gesto de amor.

    Fica uma enorme saudade.

    sílvia corrêa

    Formada em jornalismo e veterinária. Atuou por 13 anos na Folha. Co-autora de 'Medicina Felina Essencial' (Equalis) e 'A Caminho de Casa' (Ed. de Janeiro). Escreve aos domingos.

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