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    Silvia Corrêa

    Dos dois lados do balcão

    02/08/2015 02h00

    Ele acordou estranho naquele dia. Teve dificuldade para descer da cama e mal podia andar. Usualmente esfomeado, não quis comer. Tinha dor. Apostei na coluna, cujo problema já era conhecido. Nada. Apesar dos analgésicos, ele só piorava. Decidi checar o abdome e veio a resposta: Pompom, meu velho pit bull, tinha uma hemorragia. Precisava ser operado. E não podia esperar.

    Começou a caçada aos melhores profissionais de São Paulo. Afinal, o que você gostaria de oferecer a alguém de sua família?

    Pompom foi operado e teve o baço retirado. O sangramento vinha de um tumor. Perdeu sangue, ficou anêmico e teve de ir para uma UTI.

    Ilustração Tiago Elcerdo

    Era noite. Estava frio. Não foi fácil deixá-lo. Ele nunca dormira longe de casa desde uma tarde, em 2006, em que entrou correndo e ensanguentado em meu carro. Ano após ano, conquistou espaço: do jardim a um quarto, depois à sala e, desde a morte da irmã Dodivânia, dorme na cama, mais precisamente colado às nossas barrigas. Naquela noite, sem ele, ela parecia terrivelmente maior.

    Há alguns dias, voltei à UTI onde Pompom ficou internado, mas para atender um paciente. O beagle, quase inconsciente, ocupava o leito em que ele havia ficado. Lá fora, na recepção, a proprietária tentava conter as lágrimas. Parecia um déjà vu.

    Ela não precisava explicar o que sentia, eu já havia entendido. É isso o que se chama de empatia: capacidade de compreender o sentimento do outro, imaginando-se na mesma circunstância. E não há empatia maior que a advinda da experiência.

    Examinei o beagle como se fosse Pompom. Falei com a proprietária lembrando, a cada instante, o quanto aquilo era doloroso, o quanto queria vê-lo bem e levá-lo para casa.

    Não digo que um médico, para ser bom, deve ter tido familiares doentes. Mas não tenho dúvida: o caminho da boa medicina é o exercício diário e extremo da empatia. Mais uma das lições do velho Pompom. Em tempo: ele passa bem. O tumor é bastante agressivo, mas enfrenta a doença como um bravo pit bull.

    sílvia corrêa

    Formada em jornalismo e veterinária. Atuou por 13 anos na Folha. Co-autora de 'Medicina Felina Essencial' (Equalis) e 'A Caminho de Casa' (Ed. de Janeiro). Escreve aos domingos.

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