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    Silvia Corrêa

    As cicatrizes de Protegilda

    28/05/2017 02h00

    Rodrigo Fortes
    ilustração de Rodrigo Fortes para a coluna bichos de 28/5

    O medo rendeu-lhe o nome: Protegilda. Ela vagava pelas ruas do condomínio, roubando tapetes das portas de entrada, com os quais fazia um ninho num dos terrenos ainda sem construção.

    Diante da ameaça de um vizinho de envenená-la, decidi tentar retirá-la da rua. Mas a aproximação era impossível: quando percebia alguém por perto, a pequena cachorrinha colocava-se a correr, urinando e defecando em movimento.

    A estratégia foi aproximar, gradualmente, o pote de comida de nosso portão, até que finalmente o colocamos na garagem. No meio da madrugada, ela surgiu. Acordados, puxamos a corda que havíamos prendido à maçaneta do portão. Capturada!

    Presa na garagem, ela demorou horas para nos permitir tocá-la. Rendeu-se por exaustão. Foi aí que percebi a enorme cicatriz de queimadura em um dos lados de seu corpo. E prometi protegê-la para sempre.

    Hoje, Protegilda tem cerca de 12 anos, 11 deles conosco. Demorou uns dois anos para subir no meu colo, para lamber o meu rosto, para abanar freneticamente seu imponente rabo. O medo e o estresse não marcam mais seu dia a dia, mas, isso, desde que não haja visitas ou que ela não precise ir para além dos muros de nossa casa.

    Na semana passada, Protegilda teve de sair, andar de carro e descer no hospital para ser submetida a uma cirurgia. Foi como se, em um passe de mágicas, tivéssemos voltado no tempo: Protegilda parou de conter cocô e xixi, voltou a andar de costas, encolhida, desesperada.

    É verdade que ao longo desses anos nunca a submetemos a uma verdadeira terapia comportamental. Pela cartilha dos adestradores, Protegilda deveria ter sido gradualmente exposta ao estímulo amedrontador, recebendo recompensas quando conseguisse dominar seu pavor. Não fizemos isso. Fomos, simplesmente, vivendo.

    Hoje, olhando para trás, avalio que erramos. A vida mudou, os moradores da casa mudaram. E Protegilda está às vésperas de ter que se mudar. Fico imaginando como será essa adaptação.

    Do sofrimento que vi em seus olhos e sua postura na semana passada fica a lição: os medos devem ser enfrentados e não jogados para baixo do tapete, para que o cão possa superá-los de fato. Porque as feridas de Protegilda vão muito além da cicatriz de queimadura. E parecem bem vivas.

    sílvia corrêa

    Formada em jornalismo e veterinária. Atuou por 13 anos na Folha. Co-autora de 'Medicina Felina Essencial' (Equalis) e 'A Caminho de Casa' (Ed. de Janeiro). Escreve aos domingos.

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