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    Suzana Herculano-Houzel

    Carros, aviões e sua amígdala

    24/12/2013 03h25

    Ah, como era tranquilo viajar de avião na época em que minha amígdala era jovem e inocente, e ninguém dependia de mim: meu cérebro só sabia pensar nas vantagens de percorrer nove mil quilômetros em apenas algumas horas para voltar para casa ou depois retornar aos estudos nos EUA.

    Mas bastou um quase acidente, onze anos atrás, para mudar rapidamente a visão da minha amígdala sobre a aviação e acabar com minha tranquilidade nos ares. Pousei em segurança depois do susto –mas minha amígdala não se convenceu: o susto já estava registrado. Dali em diante, a cada voo eu me via antecipando o pior, prevendo minha própria morte em um acidente aéreo.

    A amígdala é uma parte do cérebro responsável por associar estímulos a emoções, ligando fortemente uma sensação desagradável de morte iminente ao ambiente de um avião, por exemplo. E faz parte do seu bom desempenho que ela aprenda muito rápido, em uma única experiência, sem que seja necessária a repetição. Assim ela ajuda a nos manter longe de perigos, conforme a simples lembrança de um estímulo associado no passado a uma sensação negativa traz tudo de volta à tona como aviso.

    Racionalmente, aviões são seguros. O risco de morte por hora viajada é 4 vezes menor dentro de um avião do que em um carro; por quilômetro percorrido, então, o avião é 60 vezes mais seguro do que o carro. Mas o problema é que a amígdala não liga para estatísticas outras que suas próprias, computadas por ela mesma em nossa própria carne. E, uma vez feita, a associação tende a ser duradoura –a não ser que a vida dê várias provas repetidas do contrário, em um processo chamado de "extinção".

    Para acabar com a angústia e as previsões catastróficas a cada nova viagem, só há um remédio: continuar viajando –e assim ir extinguindo, aos poucos, a associação nefasta feita pela amígdala.

    Posso dizer que estou melhorando, felizmente: às custas de muitas viagens de avião a trabalho por ano, já não fico mais enjoada de tensão premonitória, evidência de que minha amígdala aos poucos se convence do seu trabalho patético como adivinha. E tento me lembrar do lado bom da ansiedade: enquanto ela não me impedir de voar, ela serve como um bom lembrete para aproveitar a vida enquanto a morte não chega. Só torço para que ela não venha de avião...

    suzana herculano-houzel

    Carioca, é neurocientista treinada nos Estados Unidos, França e Alemanha.
    Escreve às terças, a
    cada duas semanas.

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