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    Suzana Herculano-Houzel

    O todo e as partes

    27/05/2014 01h30

    Os paulistas que me perdoem, mas não há como não chegar de avião ao Rio de Janeiro. Vendo a cidade do alto, com suas praias e montanhas, é fácil ter a sensação de deslumbramento que ela provoca nos turistas em sua primeira passagem.

    Quem mora há tempos na cidade, contudo, não costuma ter mais essa sensação. Mas acredito que a perda da novidade é só uma pequena parte da explicação. Fosse só por conta de um embotamento dos sentidos pela familiaridade, eu não conseguiria fazer o que descobri ser possível: ver a cidade como se fosse pela primeira vez.

    A motivação, no começo, era brincar de enxergar nossa paisagem como os descobridores portugueses devem tê-la visto –mas hoje em dia é um exercício divertido, e que acaba ensinando sobre atenção, percepção e os dois lados do cérebro.

    É uma limitação intrínseca do cérebro (e não, por exemplo, culpa da quantidade de informação do mundo moderno) só conseguirmos prestar atenção em uma coisa de cada vez: ou a televisão ou o livro, ou o trânsito ou o celular. Esta "uma coisa", no entanto, pode ser um conjunto harmonioso de partes tão integradas que formam um todo só –e o todo, em vez de uma de suas partes, pode ganhar o foco da nossa atenção.

    Selecionar qual parte do mundo recebe processamento cognitivo prioritário é o que chamamos de atenção espacial, função da área parietal do córtex cerebral. Embora os dois lados do córtex parietal sempre cooperem no processo, cada um leva uma certa vantagem sobre o outro dependendo se vamos prestar atenção no todo (o direito) ou nas partes (o esquerdo).

    A consequência mais importante dessa separação de funções (que não tem nada a ver com a lenda do hemisfério direito criativo e o esquerdo, racional) é que alternamos entre prestar atenção no conjunto ou nos pedaços que o formam –mas não conseguimos fazer as duas coisas ao mesmo tempo. Ou ouvimos o solo da guitarra ou a música inteira; ou o violino ou a orquestra toda.

    E, no caso da cidade onde moramos, o hábito nos faz dirigir a atenção para os detalhes –os sinais de trânsito, o endereço que você procura, a vaga na rua desejada. Em uma cidade estranha, por outro lado, costumamos enxergar o todo primeiro, e só depois os detalhes.

    Mas, como descobri, é possível brincar de sou-novo-na-cidade. Graças à divisão de tarefas em seu cérebro, basta prestar atenção no todo, e não nas partes.

    suzana herculano-houzel

    Carioca, é neurocientista treinada nos Estados Unidos, França e Alemanha.
    Escreve às terças, a
    cada duas semanas.

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