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    Suzana Herculano-Houzel

    Leitura noturna

    04/03/2015 02h00

    Eu não engrosso o coro dos que demonizam a tecnologia. Como por definição tecnologia é qualquer processo, objeto ou sistema que facilita a resolução de problemas, o simples mau uso é a causa mais provável de problemas atribuídos à tecnologia. Mas efeitos colaterais indesejáveis mesmo com bom uso são possíveis, claro.

    Uma dessas novas tecnologias cujos benefícios e malefícios já foram um bocado debatidos são os leitores eletrônicos. Irão eles acabar com a leitura? (Não; pelo menos lá em casa, nunca se leu tanto). Irão eles acabar com as editoras? (Nah, os problemas delas antecedem os livros eletrônicos). Irão eles... acabar com nosso sono?

    Esta foi a pergunta que uma equipe de quatro pesquisadores da Universidade Harvard resolveu responder, trazendo voluntários para dormir no laboratório por duas semanas durante as quais eles passaram cinco noites lendo livros impressos, em luz ambiente, antes de dormir, ou cinco noites lendo em um iPad no escuro quase completo.

    A equipe mostrou que ler no iPad atrasa em mais de duas horas o pico de produção de melatonina, hormônio secretado pelo cérebro e que participa da regulação do ciclo circadiano, inclusive do horário de dormir, e ainda reduz em 50% a produção desse hormônio; atrasa o sono em dez minutos; tira outros 10 minutos do tempo de sono com sonhos por noite, embora não altere o tempo total de sono; e aumenta a sensação de sonolência na manhã seguinte.

    Soa péssimo, considerando que a redução de melatonina devido a exposição noturna a luminosidade intensa é associada a um maior risco de insônia e de ao menos três tipos de câncer.

    Dito isso, vamos às ressalvas, antes que o leitor que curte ler seu Kindle por meia hora na cama antes cair no sono se sinta na obrigação de abandonar o aparelho. No estudo, os voluntários leram durante quatro horas –repito, quatro horas– antes de dormir, e por cinco dias seguidos. Para piorar, os que leram no iPad tiveram que usar a luminosidade máxima do aparelho.

    Soa como um experimento desenhado para criar a pior situação possível. Ok, anotado: não é uma boa ideia enfiar a cara numa tela ultrabrilhante por quatro horas seguidas todas as noites antes de dormir.

    Mas o que eu queria saber, o estudo não testou: se ler no escuro em um gadget que desliga sozinho quando você apaga é pior do que adormecer com o abajur ligado...

    suzana herculano-houzel

    Carioca, é neurocientista treinada nos Estados Unidos, França e Alemanha.
    Escreve às terças, a
    cada duas semanas.

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