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    Suzana Herculano-Houzel

    Falar primeiro, pensar depois

    18/08/2015 02h00

    Eu já aprendi que não é para enviar e-mails nem escrever posts para o Facebook sobre assuntos delicados à noite. A razão? Policiar-se exige esforço cognitivo e muita atenção –e a noite é o pior momento para exigir dessas habilidades, quando o cansaço acumulado ao longo do dia já está cobrando a conta.

    De certa forma, é um espanto não falarmos besteiras o tempo todo nem enunciarmos continuamente em voz alta nossos processos mentais imaturos. Para o cérebro, o curso natural das coisas é planejar um movimento e executá-lo em seguida; pensar numa frase, e articulá-la imediatamente. "Falar primeiro, pensar depois" é mesmo a tendência natural do cérebro, sobretudo quando as circunstâncias não foram planejadas: depois do fato é que o cérebro olha para trás e tenta se explicar a razão dos seus feitos.

    A possibilidade de mudar o curso da estória é cortesia do córtex pré-frontal, na frente do cérebro, que tem informações sobre nossos planos, sobre futuros alternativos e os desdobramentos da ação em curso, e assim é capaz de intervir e bloquear o fluxo natural dos acontecimentos.

    Dentro do pré-frontal, o córtex órbito-frontal é especialista em avaliar as consequências negativas possíveis de cada ação: a chance de arrependimento. Logo acima, o córtex cingulado anterior dá sinais de alarme quando o risco de se dizer besteira ou meter os pés pelas mãos é grande, inclusive durante a fala em curso. Dando o alarme, essas regiões permitem que outras partes do córtex pré-frontal entrem em ação e interrompam a quase besteira da vez.

    Mas de noite... ah, de noite. De maneiras que só agora começam a ser compreendidas, o acúmulo de lixo metabólico ao longo do dia, produto do próprio funcionamento normal do cérebro no modo acordado, compromete a atividade normal desses circuitos, e sobretudo nossa capacidade de autocontrole. O córtex pré-frontal, embotado, não tem a mesma capacidade de intervir e segurar a barra ao fim de um longo dia acordado. Esperar do próprio cérebro a capacidade de policiar-se tão bem ao fim do dia quanto após acordar é esperar demais.

    Felizmente, tem jeito: informação e planejamento. Como já sei que a chance de escrever algo de que eu me arrependa é maior tarde da noite, tento implementar uma política de nada-de-textos-polêmicos-depois-das-10. Com sorte meu córtex pré-frontal, mesmo que sonolento, consegue se lembrar disso...

    suzana herculano-houzel

    Carioca, é neurocientista treinada nos Estados Unidos, França e Alemanha.
    Escreve às terças, a
    cada duas semanas.

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