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    Suzana Herculano-Houzel

    Enfim, algo que se aprende dormindo

    01/09/2015 02h35

    "Aprender dormindo" parece uma possibilidade tão atraente quanto "perder peso comendo": ambas prometem benefícios alcançados sem esforço. Não à toa, muita besteira já foi dita, prometida e sobretudo vendida fazendo mau uso do santo nome da ciência, como as gravações em línguas estrangeiras para "ouvir" durante a noite.

    Mas eis que surge algo que de fato se aprende enquanto inconsciente –e, de fato, só neste estado. A descoberta vem do grupo de Noam Sobel, pesquisador do Instituto Weizmann em Israel, um dos neurocientistas que gosto de acompanhar.

    Sobel já apareceu nestas colunas: foi ele quem convenceu universitários a acompanhar pelo olfato um rastro de chocolate engatinhando de olhos vendados na grama, mostrando que nós humanos conseguimos, sim, fazer algo que achávamos ser prerrogativa de quadrúpedes.

    Ele e sua equipe se valeram de uma particularidade do olfato: este sentido tem acesso direto ao córtex cerebral, sem precisar passar pelo tálamo primeiro, e provavelmente por isso continua funcionando durante o sono, mas sem acordar quem dorme (enquanto outros estímulos podem sacudir o tálamo de seu torpor).

    Sobel queria saber se essa particularidade torna o cérebro capaz de aprender inconscientemente, por condicionamento clássico, como o cachorro de Pavlov que passava a salivar ao ouvir um sino que prenunciava comida. Os voluntários humanos de Sobel eram fumantes de longa data, e passaram a semana anterior ao experimento contando quantos cigarros fumavam. No experimento, realizado durante o sono, os pesquisadores faziam os voluntários, adormecidos, inalar "aroma de cigarro" seguido ou não, na inspiração seguinte, de "aroma de peixe podre".

    Mesmo adormecido, o cérebro registrou a associação: no dia seguinte, os voluntários do grupo experimental, e só eles, fumaram de 30% a 40% menos cigarros –redução que foi passando ao longo da semana.

    Curiosamente, o efeito não pode ser atribuído a uma recém-adquirida aversão ao cheiro do cigarro, pois a percepção consciente não mudou. A nova associação entre cheiro de cigarro e peixe podre deixa suas marcas nos recônditos do cérebro, sem acesso à consciência.

    O curioso é que não fumantes não precisam de nada disso: para nós, cigarros já tem cheiro de... cigarro, o que é ruim o suficiente. Ah, o que o vício não faz com o cérebro.

    suzana herculano-houzel

    Carioca, é neurocientista treinada nos Estados Unidos, França e Alemanha.
    Escreve às terças, a
    cada duas semanas.

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