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    Suzana Herculano-Houzel

    Sem segredos

    05/01/2016 02h00

    Você contaria seu maior segredo a um perfeito estranho? Pois nos últimos anos, mais de meio milhão de pessoas desconhecidas contaram seus segredos ao americano Frank Warren –e usando cartões postais.

    Segredos de amor: "Sou apaixonado pela mesma pessoa desde meus 11 anos, mas ela não sabe". De desabafo: "Eu sobrevivi a abusos, a violência, a morar na rua. Mas a anorexia está acabando comigo".

    A ocupação inusitada de Frank começou como um projeto artístico, com cartões postais feitos à mão pelo próprio, endereçados a ele e distribuídos pelas ruas de Washington, DC. Para sua surpresa, o projeto transcendeu a arte e assumiu vida própria, conforme cada vez mais pessoas descobriam o endereço de Frank e lhe enviavam seus próprios postais, feitos e decorados por elas.

    O que torna ainda mais improvável que tantas pessoas escolham enviar seus segredos a um desconhecido pelo correio é que o destino dos segredos enviados a Frank é a internet: ainda que anônimos, os segredos são publicados diariamente no site PostSecret.com. Frank lê todas as várias dezenas de postais que recebe por dia, seleciona alguns, e posta suas mensagens no site.

    Para a neurociência, no entanto, faz todo sentido: poder contar um segredo de maneira segura, e mesmo vê-lo tornar-se público, é um alívio.

    O problema é que suprimir frases ou pensamentos, e na verdade qualquer ação (como xingar a mãe alheia), requer esforço cognitivo consciente. Sentar em cima do impulso e contê-lo é possível graças ao córtex pré-frontal que, ao julgar a intenção inadequada ou o segredo impublicável, consegue impedir que se passe à ação. Mas isso exige atenção constante. Imagine o esforço de passar um dia inteiro sem poder falar as palavras "Sim", "Não", "Branco" e "Preto", como no jogo que Asterix, na história em quadrinhos, propõe aos gladiadores romanos.

    Suprimir segredos é ainda pior: são fatos, desejos, memórias, pensamentos que fazem parte de nossa essência, que nos acompanham ao longo dos dias, mas que o córtex pré-frontal decreta incomunicáveis. Não poder falar de algo que nos consome é mentalmente exaustivo.

    Mas poder contar um segredo –ah, o alívio de contá-lo, poder deixar o córtex motor seguir adiante e soltar todas aquelas frases ensaiadas tantas vezes, mas sempre contidas, e finalmente mudar de assunto. E o melhor de tudo? Frank lê segredos – mas não julga o dono.

    suzana herculano-houzel

    Carioca, é neurocientista treinada nos Estados Unidos, França e Alemanha.
    Escreve às terças, a
    cada duas semanas.

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