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    Suzana Herculano-Houzel

    Cérebro se acostuma a atos desonestos

    20/12/2016 02h00

    Lucas Incas/Flickr
    A desonestidade bem-sucedida se perpetua
    A desonestidade bem-sucedida se perpetua

    A história é conhecida: mesmo os maiores salafrários começaram pequeno. Um virar dos olhos para o outro lado aqui, um subornozinho ali, e logo estão tramando altos esquemas de desvio de verbas e corrupção. Por que pequenas desonestidades geram desonestidades cada vez maiores, numa bola de neve que só faz crescer?

    Atos desonestos são inicialmente tão moralmente e emocionalmente perturbadores para o perpetrador quanto para quem ouve a respeito. A sensação de apreensão e angústia com a perspectiva de ser desonesto age como um freio importantíssimo: estudantes que tomam substâncias que reduzem a sensação de estresse tem o dobro de probabilidade de colar em provas, por exemplo.

    O problema é que a desonestidade bem-sucedida se perpetua não só ao ser recompensada mas também ao encontrar cada vez menos objeção do próprio cérebro. Este é apenas mais um exemplo de como o cérebro se modifica com seus próprios atos e fica cada vez melhor no que faz. Isso é o que mostra um estudo da University College London, no Reino Unido, que examinou a atividade na amígdala cerebral, estrutura envolvida na geração de respostas emocionais, como angústia e medo, a situações variadas.

    Os pesquisadores avaliaram a ativação da amígdala enquanto voluntários em uma máquina de ressonância magnética funcional viam a imagem de um pote de moedas e orientavam um "parceiro" fora da máquina sobre quanto dinheiro haveria ali; voluntário e parceiro receberiam um prêmio dependendo de suas estimativas. A equipe constatou desonestidade crescente dentro da máquina –mas só quando os voluntários acreditavam que enganar o parceiro seria vantajoso para si mesmos.

    O mais importante é que não só os pesquisadores observaram uma habituação da amígdala cerebral a cada ato desonesto interesseiro, como essa habituação –conforme a amígdala se "acostumava" com a desonestidade– predizia corretamente uma desonestidade interesseira ainda maior da próxima vez.

    É como se a amígdala, impune, fosse perdendo a vergonha a cada ato desonesto em prol de si mesma. A habituação explica a desonestidade crescente, mas claro que não a justifica. A lição mais importante é como é fundamental cortar o mal pela raiz.

    Eu cresci pensando que o "jeitinho brasileiro" era uma demonstração bacana de como somos flexíveis, compreensivos e tolerantes no Brasil. Agora sei que é apenas mais um triste sinal do desrespeito pelas regras que impera no país, combinado à certeza da impunidade, e que só faz gerar mais desonestidade. Abaixo o jeitinho brasileiro!

    suzana herculano-houzel

    Carioca, é neurocientista treinada nos Estados Unidos, França e Alemanha.
    Escreve às terças, a
    cada duas semanas.

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