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    Suzana Herculano-Houzel

    Mesmo quando não dói, dor dói

    29/08/2017 02h00

    Craig Sunter/Flickr
    Medicamentos calam estruturas relacionadas à dor
    Medicamentos calam estruturas relacionadas à dor

    "Dor é psicológica", dizem alguns. Não é bem assim, não no sentido de ser a dor inventada ou inexistente: a percepção de dor é sempre real para o cérebro, não importa de onde ela venha –e o cérebro age de acordo, deixando o corpo tenso, preparado para se retirar ou lidar com algo que não deveria estar acontecendo, mesmo que a causa da dor não seja prontamente identificável.

    Acontece com a dor social de ser ignorado, com dor crônica com a qual a gente já se acostumou, com dor de pontos ainda não retirados, com aquela sinusite que não vai embora. O que torna possível a percepção consciente da dor de origem física é seu registro pelos neurônios do córtex da ínsula, assim chamado por ser uma ilha de córtex afundada sob a superfície do cérebro. A porção posterior da ínsula recebe sinais de lesão ou inflamação em algum local do corpo, casa essa informação com outras sobre o que é e onde está aquela parte do corpo, e pronto: dói o dedão do pé, doem os pontos na barriga, dói o corpo todo, permanentemente teso.

    O curioso é que não é essa dor que incomoda. Antes de chegar à ínsula, o circuito que leva os sinais de lesão do corpo ao cérebro passa por várias estruturas, que já começam a tratar do corpo, proteger a parte lesionada, e até deixar o corpo todo tenso, a postos. Mas incômodo, mesmo, vem do córtex que recebe resultados da ínsula posterior: a ínsula anterior, logo à frente, e o cingulado anterior. Calando essas estruturas com medicamentos, o corpo dói, mas o cérebro não. Mas quando elas se manifestam, a dor incomoda.

    E incomoda mesmo que a dor física já não mais chame a atenção –ou jamais tenha existido. O cingulado anterior é capaz de registrar o estado de tensão do corpo, a angústia mental, seja ela de solidão, depressão ou conflitos variados, e até mesmo os sinais contínuos de lesão ou inflamação que a ínsula talvez já tenha aprendido a ignorar –porque o que não vai embora passa a ser a nova realidade do corpo, então melhor prestar atenção em outra coisa do que na pressão constante mas familiar no rosto, nos pontos repuxando, no parente ou amigo que não lhe dá mais bola.

    E assim não dói, mas dói. Dói na alma, mesmo que não no corpo, porque dói no cérebro.

    Dessa dor que não dói, a gente só se dá conta quando ela para de doer: quando o médico tira os pontos, o remédio mágico dá conta da sinusite, a pessoa querida liga para você. Quando você respira aliviada, subitamente ciente de que a realidade não era bem como você pensava. Agora, sim, está tudo bem.

    suzana herculano-houzel

    Carioca, é neurocientista treinada nos Estados Unidos, França e Alemanha.
    Escreve às terças, a
    cada duas semanas.

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