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    Tati Bernardi

    Irrelevante

    23/12/2013 03h00

    Ontem minha amiga me contou sobre sua teoria do nariz batata. Ela acredita ser melhor acolhida por outrem, com seu convidativo nariz largo e amassado, do que seres que perfuram a alma alheia com narigas finas e pontudas. "Meu estilo de nariz é uma almofadinha quente enquanto os outros são lanças gélidas".

    Durante nosso almoço, acho que conversamos sobre as tetas cariocas de fora, o bit money, o asilo do Snowden, os corredores de ônibus do Haddad e de como gostamos do Mujica. Mas nada disso me marcou mais que a teoria do nariz batata. Até anotei isso num caderninho.

    Espionagem, política, dinheiro, teta. Sobre isso todo mundo tem (ou diz ter) algo a dizer. Só nesse jornal dezenas de colunistas, centenas de jornalistas e milhares de leitores, têm opiniões a respeito. Opiniões ultra originais que quase sempre são exatamente a mesma ou, em momentos de profunda ousadia, exatamente outra.

    Se você der um Google, quantos milhões de blogs e sites não estarão discutindo a mesma coisa? Nos botecos perto de faculdades. Nos jantares com amigos cheios de livros. Nas redes sociais de opinados que equilibram a vida entre gastos em NY e a defesa de árvores. Mas a teoria do nariz batata só minha amiga tem. E por isso eu anotei no meu caderno. E por isso eu ri. E fiquei pensando nela o resto da tarde. E achei uma besteira boa de usar em algum diálogo despretensioso de filme ou seriado ou crônica.

    Ganhei de presente um kit natal com carboidratos em seu estado mais endemoniado. Já estava decidido que a Maria herdaria o mimo, mas ela ainda não sabia e estava ansiosa. Achando que era uma espécie de elogio cúmplice, Maria resolveu me dar sua opinião sincera a respeito de todo o meu passado amoroso: "dona Tati, a senhora, até hoje, só namorou veado".

    Mandei uma mensagem de texto para o meu psiquiatra essa semana "já tô bem melhor, vou tomar só meio Efexor, ok?". E ele me respondeu "espere passar o Natal". "Por quê?". "Porque Natal é foda, é deprê pra cacete...".

    Meu pai tem setenta e três anos e me pediu que lhe fizesse um "Facebook". Ele olhou por horas as páginas de alguns amigos, tentando entender pra que servia aquele troço, e resolveu que seu primeiro post seria algo poético sobre a velhice. Me pediu que escolhesse entre duas frases: "velho só participa do mundo quando observa" e "velho é como uma folha seca de árvore: cai fácil".

    A Maria me conta que às quartas e sextas trabalha numa mansão no Jardim Europa. "Dona Tati, uma coisa cê guarde pra senhora: quanto mais rico, mais sujo é o banheiro".

    Estou melancólica no Parque da Água branca. Fui comprar alface orgânico e vejo uma fila de velhinhos arrumadinhos para o baile da saudade. Tenho saudade do meu avô. Meu avô fumava só uma vez por semana com piteira. Meu avô esquentava minhas meias suadas em cima da televisão para eu não pegar gripe. Só ele sabia onde ficava meu aparelho dos dentes. Meu avô deixava minha maçã de molho no vinagre para eu comer a casca sem medo. Meu avô caminhava oito vezes da sala pra cozinha e da cozinha pra sala pra não ter gases depois de comer porque os gases lhe davam taquicardia. Meu avô odiava visitas e chorava vendo sessão da tarde. Eu poderia escrever um livro sobre como meu avô era profundamente hipocondríaco e absurdamente legal.

    Meu pai fez mais uma frase "a velhice é uma doença sem cura". Minha mãe fica sem voz quando é final de ano. Meu namorado levou as camisetas e deixou as camisas. Fico, eu e meu alface orgânico, de cabeça pra baixo, tentando voltar pra casa.

    Uma senhora me vê chorar e se aproxima, com sotaque espanhol: "não existe depressão, o que você tem é saudade das estrelas". Ela tem bafo com cheiro de bexiga de festa. Quero rir mas o band-aid sujo que ela tem numa perna me dá medo.

    Um grande amigo jornalista almoça comigo na Vila Madalena. Ele opina sobre o meu trabalho, engrossando o caldo eternamente ralo das pessoas que acreditam que a crônica irrelevante (ou melhor: aquele tipo de texto no qual falamos de nós mesmos e não das mazelas sócio-eco-econômico-político-científicas do mundo) é sub-literatura.

    O papo é tão chato, assim como 99% de tudo o que se lê, que prefiro falar do filme Azul é a cor mais quente. Um filme tão lindo quanto o nariz batata da minha amiga. Eu achei o muco nasal daquela adolescente a coisa mais sexy de 2013. Ah, se os chatos soubessem como é penosa e maravilhosa a auto-referência.

    tati bernardi

    É escritora, redatora, roteirista de cinema e televisão e tem quatro livros publicados. Escreve às sextas.

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