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    Tati Bernardi

    Amor ao sugo

    20/01/2014 03h00

    Ela lamenta, assoando o nariz: "tive que trabalhar minha vida inteira e não pude ficar com você o tanto que eu queria...agora que posso, é você quem tem que trabalhar". Explico, segurando o riso, que essa é a vida: adultos pagam contas. Ela me chama de fria e bate o telefone. Minutos depois chega um email de cinco páginas, narrando como é dura a vida de uma mãe ignorada pela única filha. Filha essa que, cruel e maldita, não a visita há cinco dias.

    Julenice entra pálida no meu quarto "eu falei sem querer". Eu sei que não foi sem querer. Ardilosa, maquiavélica e enxerida, Dona Nena a serpenteou sedutora ("como tá de saúde, Juju? E seus filhos, netos, sobrinhos, irmãos, vizinhos, maridos e a turma toda de vagabundos que você sustenta, minha guerreira?") até o golpe final, na jugular: "ando preocupada...minha filha está ou não com alguém"?

    Julecine, em sua carência e simplicidade solícita, entregou o ouro "tá sim senhora". Ouro que mamãe tratará de transformar em bronze rapidamente, como fez com todos os meus outros namorados "não serve pra você, filha..." e então vinham os complementos: é muito quieto, é muito vaidoso, é muito novo, fala muito, é muito burro, é muito bonito, é muito estranho, é muito velho, é muito rico, é muito machista, é muito pobre, é muito inteligente, é muito feio, é muito gay". Tudo para Dona Nena é muito e, mesmo assim, nada é o bastante.

    Só percebi a influência que a opinião de mamãe tinha sobre mim quando resolvi comprar um apartamento e demorei mais de três anos para conseguir. Virei piada no Facebook, quando postava: "alguém sabe de um apartamento...". Minha analista se ajeitava na poltroninha de couro fazendo um barulho horrível que pareciam gases vingativos "ainda esse assunto?". Os corretores já fugiam de mim "lá vem aquela menina que tem a mãe que não gosta de nada".

    Sempre que eu estava quase para fechar o negócio, levava Dona Nena, mulher experiente, pra averiguar o imóvel, e ela tratava de transformar uma micro rachadura na parede em um perigo iminente de enchente, desabamento, mortes, processos criminais sem fim contra construtoras assassinas e tudo isso deflagrando na falência completa de um país. Eu não só voltava atrás na compra como ainda saia correndo do lugar, com medo de não dar tempo de salvar minha vida.

    Neste Natal convidei mamãe para conhecer meu apartamento novo. Imóvel que ela só soube da existência quando já estava quitado e mobiliado. Nessa data também decidi lhe apresentar meu mozão. Homem que ela só soube da existência quando já estava morando comigo há mais de seis meses e urinando de porta aberta. Fiz toda a comida, decorei a mesa, limpei cada frestinha de cada cantinho (mamãe tem a mania de passar a mão nas coisas e balançar a cabeça em desacordo) e comprei cinco lindos presentinhos pra ela.

    Foi dando uma da manhã e Dona Nena, sem ter do que reclamar, foi ficando numa angústia sem fim. Ela andava pelos cômodos procurando um defeito, um furo, um rasgo. Mas tudo estava perfeito: o namorado era legal, a comida estava boa, minha casa estava linda. Ela se viu obrigada a sorrir e relaxar mas, na defensiva contra algo tão terrível, tensionou os músculos do pescoço ganhando uma enxaqueca "daquelas". Todos festejavam enquanto ela, largada no sofá, bendizia sua desgraça, excitada "Que novidade! Minha vida toda foi sentir dor!"

    Quando estava indo embora em doce resignação, dando a vitória a mim aos quarenta e sete da prorrogação, me abraçou e disse "cê tá tão bonita assim...gordinha!". Sem saber aonde jogar suas biribinhas, mamãe, como uma criança entediada numa festa de São João, tacou sem dó as biribinhas em meus pés descalços.

    Eu quis não dar bola. Tenho trinta e cinco anos e estou na terapia há mais de dez. Eu quis lembrar "é a mamy e ela é assim e ela me ama mas precisa reclamar de algo". Mas no dia seguinte comecei uma dieta que me fez perder quatro quilos em quinze dias. Açucares e farinhas são meus verdadeiros inimigos e Dona Nena é minha melhor (e única, segundo ela mesma) amiga.
    Voltei do ano novo pesando 50 quilos e fui almoçar com mamãe. Ela entrou com dificuldade no carro, apesar de ser ainda muito jovem. Reclamou como odeia sair de casa "com essa cara", sem notar como ainda é muito bonita. Disse não ter ânimo pra se arrumar mas estava, como sempre, mais feminina e elegante do que eu jamais conseguirei ser.

    Ela reclamou do ar, desligou o ar, abriu as janelas reclamando do calor, fechou as janelas reclamando do barulho, ligou o ar. Foi, de sua casa até o restaurante, implicando com os meus caminhos, mesmo sem nem saber em que bairro estávamos. Implorou pra que eu a visitasse mais porque "a solidão é dilacerante" e perguntou se íamos demorar muito nesse restaurante porque ela gosta mesmo é de ficar sozinha em casa. Apertou meu braço fazendo um muxoxo com a boca "quer parar no hospital emagrecendo assim?".

    Por favor, Deus, faça com que ela não fale do meu namorado. E ela suspirou com aquele sorrisinho cínico "então você está mesmo firme com esse rapaz...". Por favor, Deus, que ela não fale mal dele. "Filha, vê se não inventa problema e fica pelo menos um tempo com alguém...cê já tá velha pra ficar escolhendo tanto!".

    tati bernardi

    É escritora, redatora, roteirista de cinema e televisão e tem quatro livros publicados. Escreve às sextas.

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