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    Tati Bernardi

    Pegada e comida

    28/04/2014 02h56

    Quando eu escrevia para revistas como a "Vip" e a "Alfa", ficava impressionada com os emails que eu recebia. Era tanto machismo que no lugar das vírgulas eu via pentelhos desprendidos por coçadas grotescas. Uma vez escrevi uma crônica super triste, narrando a infinita dor de um pé na bunda e recebi lindas palavras de apoio: "mulher que se expõe como você tem que morrer sozinha, sua arrombada do inferno."

    Já são mais de três décadas ouvindo: "escrever não dá dinheiro...e pra piorar você ainda é mulher", "mulher ou é engraçada ou é sexy", "tem que ser meiga e doce pra arrumar namorado", "não fale demais de seus sucessos profissionais pra não espantar as pessoas", "ria e bata palminhas ao invés de falar muito", "deu na primeira noite é puta", "use um belo decote quando for pedir aumento", "homem ganha mais porque não engravida", "leve um amigo com você no mecânico pra não ser feita de idiota", "não pega bem chegar sozinha nas festas". E não ouvi isso de nenhuma tia avó de Valinhos não, esses são conselhos que seres humanos que gostam de rock indie e têm muitos mestrados costumam dar.

    Sim, o mundo ainda é muito machista. Sim, isso é uma merda. Oh yeah, eu luto diária e bravamente contra todas essas ideias. Bom, dito tudo isso, o que eu quero mesmo é dizer outra coisa.

    Não consigo entender extremismos do tipo: "não pode falar que comeu/pegou uma mulher" porque isso é misógino e reaça e machista e trata a mulher como objeto. Posso estar errada, mas a princípio isso me soa como mais um exagero de gente que nunca dá chance ao humor e divide as ruas entre ciclo ativistas e playboys alcoolizados que atropelam transeuntes no Itaim. Existe uma infinidade de humanos bem intencionados (e muito reais) entres os santos e os demônios.

    Tudo o que eu mais quero, às vezes (quase sempre), lá no fundo de minha psiquê moderna e independente, é ser 'pegada' e comida. Tudo o que eu mais quero, pra relaxar de ser uma moça esforçada e correta 23 horas e meia por dia, é aquela meia horinha de sacanagem. Com sorte uma hora. Vou escrever na parede dos botecos da Vila Madalena: "Mais Nelson Rodrigues e menos radicalistas, por favor". Viver está tão chato que até pra jogar conversa fora daqui a pouco vai ter gente separando o lixo.

    Eu não quero chegar em casa (depois de fazer 500 reuniões, chefiar equipes e pelejar pra ganhar o mesmo destaque e o mesmo salário dos meus amados colegas) e, numa comunhão de alma e intelecto, ser convidada pelo meu mozinho ao ato respeitoso da troca de fluidos. Eu quero que ele me pegue e me coma.

    Que preconceito é esse comigo? Só um casaquinho de frio pode ser "pegado"? Só o cachorro-quente pode ser comido? Eu também quero! Por que os objetos e os alimentos podem sentir uma ávida, máscula e rude mão forte... e eu não? Homem é uma coisa maravilhosa, presentinho de Jesus, mas assombradas e deslumbradas pela luta de gênero, estamos esquecendo de gozar. Sou livre, lutadora, batalhadora, rainha e todas essas coisas bonitas de cartões do Dia da Mulher...mas também sei que ficar de quatro não é ser inferior, é apenas divertido e uma ótima maneira da bunda ficar bonita e a celulite não aparecer.

    Se ele puxar meus cabelos e me chamar de cadelinha, isso não faz de mim menos mulher e nem desmerece minha luta diária por igualdade e respeito. Eu não fico com vontade de ir pro tanque esfregar uma cueca e nem ele me devolve pra prateleira, como um troféu de hipismo que já não está mais empoeirado. Sério: vocês transam pra valer ou só escrevem teses de mestrado que ninguém vai ler?

    Na ânsia em defender a mulher de tudo e de todos (o que é muito necessário porque ainda sofremos muito preconceito e exploração e violência) não podemos esquecer certas delícias da vida. E uma delas, muito simples e maravilhosa, atende pelo sonoro nome de HOMEM. Macho, para as íntimas.

    Que nada nos defina, que nada nos sujeite, que a liberdade seja a nossa própria substância e que, com sorte, ele não me peça pra ficar por cima hoje. Tô com preguiça.

    tati bernardi

    É escritora, redatora, roteirista de cinema e televisão e tem quatro livros publicados. Escreve às sextas.

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