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    Tati Bernardi

    Despedida do colágeno

    11/12/2015 02h00

    Demos um longo abraço de despedida. Fiz uma mala pequena, basicamente roupas fáceis de tirar do corpo, e me mudei para um muquifo metido a cool no centro da cidade.

    Decidi, por unanimidade entre as milhares de vozes da minha cabeça, que 36 anos não é uma idade limítrofe vulgarmente conhecida em todos os eventos da cidade como "seu marido não veio?" ou "caraca, você ainda não teve filho?" e sim o auge da juventude pulsante. Para comemorar em grande estilo, tatuei uma planta carnívora na virilha, furei a orelha direita em três lugares, comprei uma sandália praticamente sem sola pra usar com uma saia que arrasta quatro centímetros pelo chão, inventei a festa "pelados com conteúdo" e chamei todas as pessoas que marquei com um "x" mental "um dia te pego" nos últimos anos. Em vez de bebida, os convidados tinham apenas que trazer livros muito cabeça e, em um uníssono caótico, lê-los para mim totalmente despidos. Os que liam em francês tinham "free pass" em todos os cômodos, sendo cômodos também uma metáfora para as repartições do meu corpo.

    Na minha nova casa com minha nova idade com meu novo status, não entravam: crises de ansiedade; pílulas pra fingir que somos adultos quando na real estamos cagando de medo AKA tarja preta; mãe e/ou pai falando de doenças e que "envelhecer é a pior coisa do mundo"; amiga grávida explicando "todos os problemas graves que podem rolar quando se decide esperar muito"; obrigações matrimoniais tais qual visitar uma tia-avó entrevada em Piraporinha Mirim; exames de rotina que se chamam "exames de rotina após os 35"; pastinha no desktop alcunhada de "desgraça" com todos os muitos pagamentos fixos do mês; e pequenos festejos internos e diários em áreas chaves da musculatura chamados "despedida do colágeno".

    Me ligaram de uma produtora falando em ajustes para um roteiro de TV e eu os mandei chamar um adulto responsável. Neste momento estou com ressaca, dois piercings inflamados e cistite, não rola pensar num roteiro pra TV. Aliás, eu nem tenho mais TV. Eu odeio TV! Sim, pode me demitir, mídia golpista! Também odeio carro, dinheiro, Nova York, garrafinhas de água, assovio na rua e sei lá, depois pesquiso mais alguma coisa no Google.

    Marquei de tomar sorvete com a Má, a Jú e a Dê e não vou passar a tarde trabalhando nem a pau. Para tudo, ele tá on-line! Se ele me mandou um snap terça e deu like na foto quarta, mas não me atendeu quinta, eu vou ou não na festa sexta? Ah, vamos de ônibus, vai! Economiza. Sim, pra Bahia! Demora nada. Gente, tô na dúvida entre a medalha Om, a regata do Ganesha e esse anel que muda de cor de acordo com a minha aura!

    A primeira coisa que comprei foi um colchão. Acho "estilo" só ele, no chão, uma coisa entre o desapego e a decoração japonesa. Fogão, geladeira e sofá eu preciso pensar se é mais legal ser contra ou a favor. Que papel é esse passando por debaixo da porta? Será o condomínio? Se for eu tô "fu", porque meu pai secou a fonte depois que eu bati o carro dele. Tô nem aí, odeio o inimigo automóvel. Não, peraí, é o resultado da minha "reserva ovular" também conhecido como "eita porra".

    Demos um longo abraço de reconciliação e, depois de um banho de hidromassagem, ficamos horas refestelados no imenso sofá de penas de ganso em adoração à gigantesca TV de tela curva. Adoro minha vida.

    tati bernardi

    É escritora, redatora, roteirista de cinema e televisão e tem quatro livros publicados. Escreve às sextas.

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